Carta aberta a Pepetela
Um genocídio silenciado - Aqui jazem as vitimas do 27 de Maio de 1977
Milhares de angolanos continuam a sentir-se agredidos na sua consciência e dignidade pelos horrores por que passaram no Governo de Agostinho Neto. Mas o que mais os choca é a atitude dos órgãos superiores do MPLA e do Estado, que persistem em recalcar e anular a memória de tais acontecimentos. Como diria o romancista alemão Gúnter Grass, nenhum país se resigna a viver em paz enquanto nas suas próprias caves houver cadáveres escondidos.
(leia mais no sitio da Associação 27 de Maio)
afinal de contas o escritor super-star tem "culpas no cartório"
Carlos Pacheco, Historiador angolano,
A declaração que V. Publicou o mês passado a justificar o seu papel na tragédia do 27 de Maio de 1977 é um documento tão cheio de omissões em relação aos factos que refere que eu não posso deixar de tomar uma posição crítica.
Ao protestar a sua inocência em relação aos horrores e à exterminação generalizada de militantes do MPLA nesse período, V. Diz ter-se limitado a desempenhar funções dentro de uma Comissão nomeada pelo Bureau Politico, cuja tarefa era “(...)seleccionar entre os depoimentos dos detidos(...) os que seriam mais elucidativos para serem transmitidos pelos orgãos de informação”. E deixa subentendido que qualquer outra responsabilidade que se lhe queira assacar, de participação na repressão ou em algum tribunal, é uma acusação desprovida de verosimilhança, fruto simplesmente de uma grande confusão com outras pessoas e entidades que funcionaram também no Ministério da Defesa em Luanda (onde se centralizaram as questões respeitantes ao 27 de Maio); visto o seu trabalho jamais se ter confundido com o que se passava e decidia noutros espaços. E termina por desejar que as instâncias superiores do MPLA venham em sua defesa e o ilibem de qualquer suspeita.
Repare bem: eu não estou aqui para o incriminar ou julgar, não é essa a minha atribuição. O que somente me move é derramar luz sobre os factos do passado de maneira a poder descrever e explicar a história cm mais rigor. Se alguem tiver que julgar alguem, essa faculdade é pertença exclusiva da sociedade e das suas instituições no pleno gozo da soberania. Se devo perdoá-lo pelo esquecimento, na esteira do que pregava o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) nos seus Fragmentos de um Evangelho Apócrifo, sinceramente respondo que tal gesto me ultrapassa. Não por incapacidade de o fazer a titulo individual, mas por deferência para com a sombra nua de milhares de desaparecidos ou por um compromisso com os seus fragmentos de sangue que reclamam por justiça. Como a justiça ainda não chegou, não faz sentido falar em perdão. Por esta ordem de razões, só me posso permitir uma atitude: confrontá-lo com algumas dúvidas que a sua declaração me suscitou na esperança de que V. Venha a esclarecer qual foi concretamente o seu desempenho institucional naqueles tempos negros de barbárie.
Mas antes de prosseguir, deixe-me fazer-lhe uma advertência. Não se iluda, ilustre concidadão, pensando que o MPLA por solidariedade ou por consideração á sua leal e desinteressada prestação de serviços á revolução o venha a cooenestar dos estigmas de que se queixa. Lembre-se das personagens de George Orwell (autor de 1984) que se humilharam ao Grande Irmão (o Partido) e lhe entregaram as suas existências, persuadidas de que ele representava a chave dos designios superiores da História e nunca as abandonaria. Ainda por analogia, veja o que sucedeu com o desmoronamento da União Soviética e com as pessoas que durante uma vida inteira se dedicaram ao Partido. Postas de parte e deixadas entregues a si próprias, não souberam o que fazer com as suas crenças, enquanto outras – por crimes que o Partido as induziu a cometer – carregam solitárias o peso de teriveis fantasmas.
Reconheço que os seus livros são admirados pela beleza e pela “transcendência espiritual” das estórias que conta. Porém, preferiria vê-lo doutra forma. Não como um escriba sentado e submisso que sempre cortejou o principe e a sua côrte; que sempre se acomodou aos servilismos culturais do MPLA e aos fetichismos do seu regime politico; ou que sempre se calou diante das monstruosidades criminais e totalitárias do Estado, e sempre fingiu ignorar os abusos contra o pensamento e a liberdade de expressão. Ao interpelá-lo agora com esta carta, conto um dia vê-lo como um escriba de pé que se libertou da passividade de outrora, que colocou um ponto final no seu silêncio e, finalmente, resgatou a “verticalidade do verbo”, de que fala o poeta uruguaio Saul Ibargoyen.
Não me interprete mal. Não estou a querer cingir na sua lapela o botão de dissidente, nem a sugerir que o deva ser, o que estou a propôr é que tenha o “hábito altamente incómodo” de falar verdade – como declarava o novelista e intelectual russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937) – ao invés de se contentar em ser aplaudido como um tartufo. É isso que muita gente espera de si depois de ler o seu documento.
Com efeito, esperam-se mais explicações, especialmente sobre a tal Comissão em que V. Trabalhou. Para as pessoas menos avisadas (ou desinformadas) fica a impressão que os membros dessa Comissão, do principio ao fim, se pautaram por um espirito de equanimidade. No entanto, não foi essa a percepção nem a experiência que colhi quando V. e outros (entre os quais ministros e altos responsáveis do MPLA) me “interrogaram” na tarde do dia 4 de Junho de 1977. O que ali se passou (recorda-se?) foi tudo menos uma investigação ditada pelo rigor e pela observância de normas juridicas, e menos ainda pelo respeito a regras de humanidade, e sim uma longa e delirante sessão de tortura psicológica, temperada por gritos de achincalhamento, por ameaças fisicas e todo o tipo de bestialidades. No tempo em que durou aquele inferno inquisitorial tive por vezes a sensação de estar na antecâmara da morte. Aliás, o que essa Comissão fez comigo, fê-lo tambem com muitas outras vitimas, totalmente desprotegidas. Pergunto-lhe pois, caro conterrâneo, o que representa para si um acto destes? É ou não um acto de repressão, de selvajaria institucional, quando V. alega não ter participado de tais práticas? É ou não algo de comparável aos famigerados processos de Moscovo e Pequim onde, afinal, prevaleceu o sádico prazer de punir e destruir moral e fisicamente pessoas cujo delito era pensarem diferente?
Outra explicação que se lhe pede tem a ver com a sua postura moral ante a avalancha de actos hediondos que decapitaram uma parcela importante da juventude angolana, a melhor talvez do MPLA. Até hoje V. não emitiu uma palavra a respeito, o que é estranho. O facto de ter trabalhado no Ministério da Defesa deu-lhe ocasião para ver de perto a onda de canibalização e histeria sanguinária em que o país soçobrou. Se não foi um sujeito ausente, pelo menos esteve bem, dentro desse clima de terrôr e força. Que adianta afirmar não ter sujado as mãos de sangue e não participar de sentenças de morte? Acaso não ocorre que, tendo estado no lugar em que esteve (e indo até ao fim), acabou por se tornar cúmplice de toda essa irracionalidade?
A sua posição moral, na verdade, é bastante controversa, sem esquecer outras situações não menos delicadas que, julgo, lhe ficará bem elucidar. Como, por exemplo, o seu papel na campanha de intoxicação ideológica, muto antes do 27 de Maio, com artigos na imprensa oficial, nos quais – por recurso ao simbolo da serpente – se aviltaram figuras politicas de elevado escalão na hierarquia do Estado e do Partido, alem de terem servido para desumanizar o processo politico e empurrar uma boa parte dos militantes do MPLA para o ostracismo. Quem lhe encomendou este papel de protector especial das instituições?
(26 Dezembro2005)
Até à presente data, aos factos, Pepetela disse nada,,,
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