“variações infímas podem alterar irreversivelmente o padrão dos acontecimentos” Uma simples mistificação dos economistas americanos, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias, cientificamente dada a conhecer á Humanidade por Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos.

quinta-feira, março 31, 2005

Fernando Rosas - A Europa Bolkestein

Adecisão do Conselho Europeu de recomendar algumas alterações essenciais ao projecto de criação do mercado único dos serviços na UE - a proposta de directiva Bolkestein, nome do ex-comissário seu autor - deixa prever que o Parlamento Europeu, onde o assunto já se encontra, poderá travar alguns dos aspectos mais agressivamente anti-sociais da sua versão inicial.
Mas a grande mobilização social internacional contra a directiva Bolkestein, que levou dezenas de milhares de trabalhadores de toda a Europa às ruas de Bruxelas, não poderá, seguramente, desarmar. A ela, e à notável mobilização da esquerda francesa (incluindo boa parte da esquerda do Partido Socialista) pelo "não" no referendo sobre a Constituição europeia, justamente apontando-a como a essência de que essa lógica Bolkestein seria a expressão, se deve o primeiro recuo dos chefes de Estado e de governo no último Conselho Europeu. A ver vamos o que se vai seguir.
Convirá esclarecer que o que está em causa neste debate - mais uma vez, nos seus aspectos de substância, ele passou, salvo raras excepções, ao lado dos grandes temas patrocinados pelos media nacionais - não é tanto a criação de um mercado único europeu para o geral dos serviços, à semelhança do que existe para as mercadorias e os capitais. Em princípio e em abstracto, esse objectivo pode ser positivo para o crescimento económico e para o emprego na UE. Mas não, seguramente, pela forma e com o âmbito previstos na directiva Bolkestein. Um acordo formal sobre a existência de um mercado único dos serviços, sobre a necessidade de revisão de variados obstáculos burocráticos, políticos, jurídicos e outros à circulação das empresas europeias de serviços, não deve esconder as profundas divergências existentes quanto à sua concepção. Divergências que estão no cerne do próprio projecto da Europa que se quer construir.
A directiva Bolkestein tem uma cenoura e dois paus. A cenoura são as propostas de facilitação da circulação, de desburocratização, simplificação de processos administrativos, harmonização das legislações, etc..., tudo, de uma forma geral, ideias estimáveis e necessárias. Depois vêm os paus. O primeiro respeita ao essencial, à forma como o sistema funcionaria. E funcionaria de acordo com o "princípio do país de origem". Quer isto dizer que uma empresa prestadora de serviços (por exemplo, da construção civil, um dos maiores sectores de serviços) actuaria num outro país da UE de acordo com as leis (contratação colectiva, segurança social, leis laborais) do Estado-membro em que ela está estabelecida.
Está bem de ver o que disto resultaria: os clientes dos países com salários mais altos e protecções sociais mais efectivas passariam a recorrer a empresas prestadoras de serviços (desde logo por eles criadas) localizadas nos Estados com salários mais baixos e leis do trabalho e de protecção social menos exigentes, para virem fazer a custos reduzidos o que eles necessitassem. Com um duplo efeito: por um lado, o dumping social, a concorrência desleal, contra os trabalhadores do país de destino (era a forma ideal de rodear as conquistas sociais institucionalizadas nesses Estados), por outro, frustrando a possibilidade de os trabalhadores dos países de origem melhorarem as suas condições de vida e de trabalho, obtendo um verdadeiro rendimento diferencial à custa da sobreexploração do trabalho mais barato importado.
É claro que este sistema, uma vez generalizado, sob a pressão da concorrência maciça das firmas com custos de trabalho mais baixos, tenderá a nivelar pelo menor denominador comum os salários e as leis laborais europeias. Na realidade, ela é uma ameaça directamente apontada, desde logo, ao núcleo duro do Estado social na Europa, visando a desregulamentação generalizada das mais avançadas legislações de trabalho e segurança social, daí resultando uma verdadeira regressão social global no espaço europeu.
Vale a pena lembrar que já no tocante ao espaço europeu do conhecimento e da ciência a lógica do nivelamento é precisamente a contrária: harmonizar-se por cima, para que os países mais ricos possam captar e incorporar os "cérebros" dos Estados mais pobres e sem possibilidades económicas ou tecnológicas de os reter. A mesma Europa Bolkestein servida por lógicas só aparentemente contraditórias.
O segundo pau respeita à inclusão no âmbito da liberalização que a directiva prevê de serviços públicos de interesse geral, como os serviços sociais, de saúde, de educação ou culturais. Sem impor aos Estados-membros a obrigatoriedade de privatizar esses serviços, toda a directiva Bolkestein é marcada por uma lógica privatista, de comercialização e mercantilização extensível aos serviços públicos, naturalmente sujeitos no seu funcionamento às prioridades do lucro e do mercado. É escusado elaborar mais sobre as previsíveis consequências desta estratégia na qualidade e na segurança dos serviços e nos direitos dos utentes ao seu usufruto. A nossa curta (esperemos!) experiência doméstica dos hospitais SA fala por si. E atenção: a liberalização dos serviços culturais põe directamente em causa a possibilidade de se manterem as políticas públicas de protecção e estímulo das artes e culturas nacionais nas suas diversas protecções e manifestações específicas. Com a mercantilização e liberalização das "ofertas culturais", o que vai restar da Europa das culturas e da cultura europeia?
Neste contexto, não me parecem de grande eficácia, mesmo para os defensores extremes do neoliberalismo, dessa espécie de choque "asiático", as homilias moralizantes contra a obstinação da "velha Europa" social e política na defesa do seu património histórico diferenciador. Nos dias de hoje começa a estar claro o que verdadeiramente está em causa. Aliás, a directiva Bolkestein conduz-nos ao fulcro do problema: a deriva anti-social que percorre o conjunto das instituições da UE, essa espécie de capitulação assumida perante a tendencial asiatização e americanização das relações sociais na Europa. E que se exprime no seu concentrado político, institucional e social que é o tratado constitucional europeu, provavelmente a sujeitar a referendo ainda não se sabe bem quando.
A Europa Bolkestein e do tratado constitucional sabemos o que são: 20 milhões de desempregados, 70 milhões de pobres e milhões de imigrantes excluídos da condição de cidadãos. É uma União contra a própria ideia de Europa. É em nome dessa ideia, desse outro europeísmo, de uma Europa reencontrada com a democracia e a legitimidade democrática, de um projecto europeu de pleno emprego e de direitos sociais, é em nome desse conceito de refundação europeia que se vão decidir as escolhas dos tempos difíceis que aí vêm. Entre a civilização e as novas formas da barbárie. Nem mais, nem menos.

 
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