Wright Mills - A Elite e o Poder
INTRODUÇÃO
As teorias defendidas por Wright Mills são bastante pertinentes para a análise do sistema de poder vigente nos E.U.A (e em todo o mundo). Assentes na relação existente entre “Elite e Massas”, o autor da obra “A Elite do Poder” defende que a estrutura do poder Norte-Americana é caracterizada pela existência de um oligopólio constituído pelas elites política, económica e militar. Para melhor fundamentar esta ideia, Mills recorre á análise do processo de desenvolvimento histórico dos E.U.A, considerando que o complexo de poder nem sempre é equilibrado, dependendo da conjuntura.
Os estudos realizados pelo sociólogo merecem especial atenção no actual contexto histórico, em que o poder dos Estados tende a diminuir, não só do ponto de vista externo, mas também internamente. A multiplicação dos centros de poder, verificado no pós Segunda Guerra Mundial, e que sofreu um processo de aceleração exponencial com o fim da guerra fria, contribuiu para que os Estados tenham cada vez maior dificuldade no exercício pleno da sua soberania. Este fenómeno é particularmente visível na área da economia, tendo-se registado a emergência de entidades privadas que, actualmente, detêm índices de P.I.B superiores aos de muitos Estados desenvolvidos. Num contexto de globalização, o poder das grandes empresas transnacionais acaba por influenciar determinantemente a acção dos Estados.
Assim, importa estabelecer relações entre estes factos, e o profundo sentimento de descrença nos actuais sistemas políticos. A existência de grupos que são a tal ponto privilegiados pelo poder político, que chegam mesmo a absorvê-lo, coloca em causa a ideia de democracia: o governo do povo, e não de alguns elementos, ditos seus representantes, em nome do povo.
I
TECNOCRACIA E OS GRUPOS DE PRESSÃO
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, é declarada universalmente a vitória da democracia sobre o totalitarismo, embora o mundo estivesse dividido em dois blocos políticos e ideológicos rivais. Os direitos humanos e as liberdades individuais fundamentais foram proclamadas como arauto de uma nova ordem mundial, que seria materializada na Organização das Nações Unidas. No entanto, a partir desta data (e mais propriamente com a queda do Muro de Berlim e fim do mundo bipolar), tem-se verificado um processo de regressão dos princípios democráticos. Como defendem Marcel Prélout e Georges Lescuyer ´ Precisamente na altura em que, devido ao abandono do adversário, é declarada vitoriosa a guerra contra o totalitarismo, a democracia exprime-se com uma dificuldade crescente. ‘ .
A despolitização assume-se como um facto incontornável das novas sociedades pós-modernas. O Estado tende mais para ser uma administração das coisas, do que um governo de pessoas, impondo-se a tecnocracia como a única ideologia sobrevivente. A ideia de um governo da técnica, ou, mais precisamente, dos técnicos, remonta á Antiguidade Clássica com Sócrates e Platão, embora seja com a industrialização, que ganha notoriedade teórica. Entre os principais autores que reflectiram sobre a possibilidade da existência de uma sociedade em que a racionalidade se confundia com o tecnicismo, é de referir Henri de Saint-Simon. A seu ver a França transformou-se numa grande manufactura, e a Nação Francesa numa grande oficina. Esta manufactura geral deve ser dirigida da mesma maneira que as fábricas privadas. “ O Estado reduz-se assim a um organismo responsável pelo controlo da boa organização da produção”.
Na lógica da sua filiação em Saint-Simon, a teoria de Augusto Comte é também de inspiração tecnocrática. Com a sua visão de uma humanidade, cujo processo de desenvolvimento passa, históricamente, por três estádios (teológico, metafísico, e científico), Comte desenvolveu o pensamento do seu mestre, defendendo a substituição dos regimes orientados pelas considerações subjectivistas dos políticos, por um regime no qual a direcção pertenceria a administradores qualificados pelo saber científico.
A aplicação do ideal tecnocrático, tal como demonstrou James Burnham, gera a emergência de uma nova era, caracterizada pelo amplo poder dos organizadores. Estes possuem competências técnicas e científicas muito avançadas, sendo responsáveis pela direcção geral e global do trabalho de produção. Nas palavras de Rougier ´ Alimentar uma população, construir casas, aquecer, iluminar, vestir, fornecer trabalho e manter uma moeda estável, são tudo problemas técnicos que a ciência económica e as disciplinas sociais estão suficientemente avançadas para resolver sem a intervenção de sistemas apriorísticos ou de princípios pré-concebidos. ‘ .
O facto dos tecnocratas poderem facilmente ascender á classe política, leva a que certos teóricos considerem que esta nova classe de dirigentes técnicos constitui uma minoria organizada que tende a impor o seu poder a uma maioria desorganizada. Como afirma o Professor Adriano Moreira, a tecnocracia para a matriz marxista baseia-se num ´ processo político de transferência de poderes, causado pelos efeitos negativos do capitalismo, para esta nova espécie de bouc-émissaire que seriam os tecnocratas. ‘ .
Este processo torna-se mais pertinente, a partir do momento em que se verifica a planetização dos fenómenos políticos, e em que os Estados, por um lado, se vêm confrontados com a emergência de novos poderes actuantes nas esferas internas e internacionais, poderes estes que assumem antigas responsabilidades e funções, outrora monopólio dos Estados; e por outro lado, são sujeitos a processos de integração em instituições supranacionais. Assim, assistimos a uma nova realidade que é constituída por tecnocracias supranacionais que se impõem ás tecnocracias nacionais, e em que ambas estabelecem relações cada vez mais próximas com tecnocracias privadas.
Estas últimas englobam-se na categoria de grupos de pressão, ou seja, instituições privadas unidas por interesses e objectivos comuns, e responsáveis pelo empreendimento de acções realizadas junto de qualquer autoridade, com vista a influenciar as suas decisões. Constituem assim um dos principais intervenientes na luta pelo poder, chegando mesmo, de acordo com as teorias de vários autores, a influenciar determinantemente o processo político, e a tornar-se parte integrante do mesmo.
Num contexto de globalização económica e financeira, em que o sistema capitalista passa a usufruir de ampla mobilidade dos seus factores de produção, e consequentemente, de custos diferenciados que permitem aumentar a rendibilidade dos investimentos, as grandes empresas assumem-se como um dos mais importantes grupos de pressão da actualidade.
II
O DESENVOLVIMENTO DA ELITE DO PODER NORTE-AMERICANA
Um dos principais autores que debruçou os seus estudos sobre a estrutura do poder foi o sociólogo Wright Mills. Na sua principal obra “A Elite do Poder”, o teórico defende que na sociedade Norte-Americana, a grande maioria da população ´...é circunscrita aos mundos em que vivem...‘ , realidades estas conduzidas por ´...forças que nunca poderão compreender ou governar.‘ . A velha dicotomia entre a Elite e a Massa, teorizada por Pareto, Michels ou Mosga, é recuperada por Wright Mills, sendo o teórico apologista da existência de um grupo privilegiado que reúne poder suficiente para influenciar o destino das pessoas comuns.
No entanto, este grupo privilegiado não é homogéneo, encontrando-se o poder disperso por três instituições: as elites política, económica e militar. Segundo Mills, todas as outras instituições são secundárias na análise do poder nos E.U.A, sendo estas completamente subordinadas pelos poderes atrás citados, ´ As instituições religiosas, educativas e familiares não são autónomas do poder nacional; pelo contrário estas áreas descentralizadas são cada vez mais moldadas pelos grandes três...‘ .
Para demonstrar a influência exercida por estes poderes no seio da sociedade Norte-Americana, Wright Mills recorre a uma análise histórica, defendendo que o processo de desenvolvimento histórico assenta na acção dos poderes político, militar e económico. Conforme o autor ´...as mudanças no sistema do poder dos E.U.A não envolveram desafios importantes aos princípios que o legitimam. Mesmo quando foram suficientemente decisivos para serem apelidados de revoluções, não envolveram o recurso aos canhões de um navio (...), ou aos mecanismos de um Estado policial (...). As mudanças na estrutura do poder Norte-Americano são baseados em mudanças institucionais nas posições das ordens política, militar e económica.‘ . Assim, podemos afirmar que, segundo o teórico, o desenvolvimento histórico nos E.U.A, para além de ser fruto da acção de uma Elite, é também um processo influenciado pela distribuição dos poderes entre as instituições que constituem a Elite.
Do século XVIII (independência dos E.U.A) até á primeira metade do século XIX, as elites política, económica, e militar encontravam-se unificadas de uma maneira bastante simples, verificando-se uma certa “volatilidade da Elite”, isto é, o indivíduo com poder pertencia simultaneamente ás três instituições, sendo a passagem de funções e posições feita facilmente, ´O importante facto desta época é que a vida social, as instituições económicas, a corporação militar, e a ordem política coincidem, e os homens que eram políticos, também exerciam papéis importantes na economia...‘ . No entanto, é necessário referir que a Elite não era una, coesa e centralizada, sendo constituída por uma pluralidade de indivíduos que detinham simultaneamente os três poderes, apenas a nível local. Em parte, foi a existência de vários centros do poder divididos e rivais que terá originado a Guerra Civil Americana.
A partir da segunda metade do século XIX, o poder económico assume-se como supremo. Esta supremacia iniciou-se formalmente com as eleições para o Congresso em 1866, tendo sido consolidado com a aprovação da Amenda Décima Quarta por parte do Supremo Tribunal, e que dava uma maior protecção aos grupos económicos, face aos interesses do Estado. Este período testemunhou a transferência de poder de iniciativa do governo para este tipo de grupos, tendo sido marcado por grandes escândalos de corrupção e de “compra” de Senadores e Juízes. Como defende Wright Mills ´O facto de ambos os governos, Estadual e Federais, serem limitados no seu poder para regular, significava que eram, eles próprios regulados pelos grandes interesses económicos. Os seus poderes eram desorganizados, enquanto que os poderes dos grupos económicos e financeiros estavam concentrados e interligados.‘ .
Com rendimentos e um número de empregados superiores aos de alguns Estados Federais, as grandes empresas Norte-Americanas acabaram por controlar partidos políticos, por “comprar” leis, ou por influenciar determinantemente a acção política de muitos Congressistas. Assim, a ordem económica suplementou a ordem política que, por sua vez, subordinava a ordem militar que, com o fim da Guerra Civil, havia perdido bastante importância.
No entanto, o crescimento do poder da economia acabou em Outubro de 1929. Em poucos dias (em poucas horas até), as cotações bolsistas perderam o que haviam ganho em vários meses e anos. A crise de 1929, em parte, foi causado pela expansão exponencial da economia: não existe qualquer dúvida de que o aumento de produção constitui um factor benéfico para a indústria. Contudo, um ritmo de expansão demasiado rápido poderá acarretar dificuldades de transição e adaptação.
Embora a crise económica fosse mundial, os E.U.A encontravam-se entre os mais duramente afectados, visto a sua economia ser totalmente baseada na livre concorrência. O desprezo por medidas de segurança social, contribuiu para que nada protegesse a população activa contra o desemprego e outras vicissitudes sociais, provocadas pela crise económica, encontrando-se esta dependente da caridade privada e do altruísmo dos grandes magnatas .
A agudização das desigualdades sociais contribuiu para que em 1932, o então Presidente Hoover perdesse as eleições para o Democrata Franklin Delano Roosevelt. O novo Presidente e a sua Administração iniciaram a sua actividade em plena confusão, confusão essa que, pela sua própria amplitude, continha os germes dum renovamento e proporcionava á nova equipa oportunidades únicas para provar o seu valor político. Atingida pelo pânico, a população estava pronta a seguir quem tomasse, enfim, a responsabilidade de agir. Nos primeiro cem dias de governação, Roosevelt adoptou imediatamente um grande número de medidas e de reformas que faziam parte do seu plano de recuperação económica e social do país, o New Deal.
Os agricultores receberam um auxílio federal, empréstimos em dinheiro, e a autorização de aumentar o preço dos seus produtos. Organizou-se com um orçamento considerável, um sistema de protecção social moderno e eficaz, dando-se especial relevância á assistência á população mais necessitada. Ao mesmo tempo, foi aprovada uma nova lei para a Bolsa, cujo principal objectivo era evitar quaisquer formas de especulação excessiva.
No entanto, a iniciativa mais revolucionária do New Deal foi o NIRA (National Industry Recovery Act). Esta lei procurava uma colaboração entre os agentes privados e o Estado, de modo a estimular o desenvolvimento económico. Este implicava, segundo as doutrinas Keynesianas em voga na época, o aumento dos salários, e a diminuição do dia de trabalho: quanto maior fosse o número de pessoas a trabalhar, maior seria o poder de compra dos E.U.A .
A realização deste programa, obviamente suscitou resistências. Uma vez passado o pânico, o poder económico ressentiu-se da regulamentação das suas actividades privadas por parte do poder político. Face a esta situação, e inicialmente, numerosos empresários entraram em luta com a Administração Roosevelt, que demonstrava opor-se radicalmente ao individualismo tradicional dos E.U.A, e ao laissez faire, não menos tradicional da sua economia. Concentraram o seu poder no apoio ao Partido Republicano que, durante o New Deal, denunciou as medidas inconstitucionais aplicadas pelos Democratas.
No entanto, a médio prazo, os grandes grupos económicos acabaram por aceitar e reconhecer o poder político, tendo recorrido a uma nova estratégia. A solução deveria passar por colaborar com este, de modo a, e em contrapartida, assegurar a prossecução de certos interesses. Segundo Wright Mills ´Á medida que o directório New Deal ganhava poder político, a elite económica, que num certo período, tinha lutado contra o desenvolvimento do governo (...), acabou por a ele se juntar, nos seus níveis mais elevados.‘ .
O New Deal de Roosevelt constituiu um sistema de poder baseado na existência de relações entre diversos grupos de pressão e blocos de interesses organizados, relações essas controladas pelo poder político. Podemos afirmar que na história Americana, a década de trinta pertenceu ao poder político: os grandes grupos económicos foram contestados e suplementados, tendo a estrutura do poder passado a ser orquestrada por políticos que, no entanto, não desprezaram por completo o poder económico.
No entanto, o eclodir da Segunda Guerra Mundial veio a originar profundas mutações no relacionamento das instituições do poder Norte-Americano. O bombardeamento da base Americana de Pearl Harbor localizada no Pacífico, por parte da aviação imperial Japonesa, apenas veio a confirmar a participação inevitável dos E.U.A na luta contra as forças do Eixo.
Para tal, foi necessário, por um lado, o aumento da produção de equipamento e armamento militar, e por outro lado, o recrutamento maciço de soldados a ingressar nas fileiras do Exército. Assim, ter-se-á verificado a passagem de uma estrutura do poder assente na primazia do poder político sobre os poderes económico e militar, para uma estrutura do poder, onde, necessariamente, estes últimos sobrepõem-se sobre as instituições políticas. Nas palavras de Wright Mills ´O capitalismo Americano é, agora, em parte, um capitalismo militarizado, e a mais importante relação entre a grande empresa e o Estado, baseia-se na coincidência de interesses entre as altas patentes militares e os grandes empresários, que os engrandece, e subordina o papel dos meros homens políticos. ‘ .
A queda das potências totalitaristas Alemã e Japonesa, contudo, não provocou quaisquer alterações no equilíbrio dos poderes no sistema Norte-Americano. A divisão do mundo do pós Segunda Guerra Mundial em dois blocos ideológicos rivais apenas acentuou e consolidou o poder do directório económico e militar, ou, conforme as palavras do Presidente Eisenhower, do complexo militar e industrial.
Os membros do Congresso, no passado hostis á elite militar, demonstravam ter em grande consideração o papel desempenhado pelos oficiais. O próprio Presidente não poderia, na prática, nomear o staff do Departamento de Estado ou os Embaixadores, sem consultar os seus conselheiros militares. Segundo Mills, o aumento do poder militar constitui uma forte ameaça aos princípios democráticos ainda prevalecentes na sociedade Norte-Americana.
De acordo com o sociólogo ´ Os senhores da guerra, (...) estão a tentar plantar firmemente a sua metafísica, na globalidade da população.‘ . Num estado aparente de guerra permanente e de ameaça do “império do mal soviético”, os E.U.A não poderiam ser mais considerados uma democracia verdadeiramente genuína, visto esta ser assente em princípios pluralistas e no consentimento do desacordo, precisamente o que não é permitido pela disciplina militar. O McArthismo e a caça ás bruxas, constituíram dois fenómenos exemplificativos da falta de genuinidade da democracia Americana do pós Segunda Guerra Mundial.
Contudo, e ao mesmo tempo, a existência de um largo sector militar era um factor extremamente pertinente para o desenvolvimento económico. Por um lado, importa ter em conta que o sector militar empregava centenas de milhares de pessoas (durante o período da guerra fria, um grande número de bases Norte-Americanas foram implementadas por todo o mundo ocidental, nomeadamente na Europa reconstruída); e por outro lado, é necessário destacar o importante papel desempenhado pela instituição militar no desenvolvimento económico: podemos afirmar que os lucros das grandes companhias de equipamento e armamento militar, como a Lockehead ou a Boeing, dependiam da manutenção do clima de guerra iminente.
A afirmação do poderio do complexo militar e industrial conduziu a um profundo desequilíbrio da balança de poderes no sistema Norte-Americana. Vários Presidentes (Eisenhower por exemplo), chegaram mesmo a exprimir publicamente o perigo da concentração dos poderes nestas elites organizadas. Alguns teóricos defensores da teoria da conspiração no assassinato do Presidente John Fitzgerald Kennnedy, consideram que os acontecimentos registados em Dallas a 22 de Novembro de 1963 foram causados pela reacção á tentativa de dominação das elites económica e militar, por parte do poder político. Num dos seus livros, escrito durante os seis meses de imobilidade impostos por uma intervenção cirúrgica, Profils in Courage, Kennedy observara ´ Apenas os que são corajosos serão capazes de tomar decisões difíceis e impopulares. ‘ .
No entanto, a queda do Muro de Berlim em finais do século XX acabou com os vestígios da bipolaridade política e ideológica existentes nas últimas décadas, tendo ditado o fim do complexo militar e industrial Norte-Americano. Este terá sido substituído por um novo complexo meramente industrial, que tende a secundarizar os outros poderes, chegando mesmo a utilizá-los como meras instituições defensoras dos seus interesses particulares.
III
A SUBVERSÃO DO PODER POLÍTICO POR PARTE DO PODER ECONÓMICO
Partindo do modelo de análise aplicado por Wright Mills em “A Elite do Poder”, poderemos tecer novas considerações sobre o actual equilíbrio de poderes nos E.U.A, e em todo o mundo. O fim da Segunda Guerra Mundial marcou o início de um processo de reestruturação da ordem económica internacional: a sua concepção ocorreu em Breton Woods, no ano de 1944, tendo sido criados o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, e mais tarde assinado o Acordo Geral de Tarifas e Comércio.
Mundializava-se assim, formalmente, uma perspectiva ocidental (e quase exclusivamente Americana) das relações económicas internacionais. Estas, do ponto de vista comercial, deveriam pautar-se pela idealizada concretização do livre câmbio internacional, enquanto que, do ponto de vista monetário e financeiro, deveriam ser reguladas por um sistema monetário assente na convertivilidade do dólar em ouro. Contudo, a crise económica da década de setenta levou a que os E.U.A optassem pelo abandono do sistema de paridades fixas, dando início ao actual sistema de câmbios flutuantes, ainda que sujeitos a determinados regimes de gestão.
A intensificação das relações entre velhos e novos actores das relações internacionais, e a evolução da estrutura sistémica mundializada, decorrentes destes e outros desenvolvimentos, sofreram uma aceleração exponencial com a queda do Muro de Berlim em 1989. Como defende Zaki Aldi ´A democracia de mercado constitui a partir de agora a matriz do mundo, a problemática legítima do sistema internacional (...).[Mas, o ] tempo mundial não é apenas a legitimação da ideologia de mercado e do seu corolário político, a democracia. É a afirmação de que eles são organicamente associados a ponto de existir uma relação circular entre mercado, desenvolvimento e democracia.‘ .
A nova revolução capitalista é caracterizada, por um lado, pela total absorção do ambiente externo por parte do sistema, e, por outro lado, por uma circulação dos fluxos financeiros totalmente livre e desregulamentada. De acordo com o Professor Victor Marques dos Santos ´O novo capitalismo é diferente do anterior. Assenta na finança e na informação em tempo real. Privilegia o curto prazo (...). Favorece os mais rápidos e marginaliza aqueles que demonstram incapacidade de acompanhamento de evolução contínua dos mercados, e dos ritmos acelerados a que as transacções se processam.‘ .
Nesta nova realidade económica mundializada, as grandes empresas transnacionais tendem a aumentar e a consolidar o seu poder na esfera internacional, optimizando os seus rendimentos através de mega-fusões e de conquistas de parcelas do mercado. O aumento do poder da elite económica mundial gera desequilíbrios na balança de poderes, sendo os Estados os principais afectados. Conforme as palavras de Alain Tourraine ´O poder estava nas mãos dos príncipes, das oligarquias (...). Esta imagem do poder não corresponde á nova realidade. O poder está em toda a parte, e, em parte alguma: está na ponderação, nos fluxos financeiros, nos modelos de vida que se generalizam...‘ .
Embora o modelo de análise de Wright Mills possa ser aplicado no estudo politológico do sistema internacional, em geral, e do sistema de poder dos E.U.A em particular, a realidade da década de cinquenta (a sua obra foi escrita em 1956) é bastante diferente da realidade actual. Se tivermos em conta as empresas Norte-Americanas que apresentavam um maior P.I.B em 1956, podemos verificar que, das cinquenta citadas pela revista Fortune, apenas trinta e cinco têm, actualmente, alguma notoriedade: a terceira maior empresa dos E.U.A, a rede de supermercados Wal Mart, nem sequer existia na altura, e a companhia informática IBM, em sexto lugar na actual lista da Fortune, em 1956 não constava da lista das cinquenta maiores companhias.
No entanto, e apesar do capitalismo Americano, como foi demonstrado, ter sofrido mutações, seria erróneo afirmar que a acção do poder económico como grupo de pressão nos E.U.A, constitui um fenómeno recente. O financiamento dos partidos políticos por parte de grupos económicos, por exemplo, é um fenómeno congénito, que tem vindo a perdurar e a acentuar-se ao longo dos tempos. Não nos podemos esquecer que nos E.U.A, o modelo de partido de massas nunca vingou, dependendo as entidades partidárias das contribuições dos privados. Segundo Wright Mills ´O dinheiro permite que o poder económico do seu possuidor seja traduzido nas causas dos partidos políticos.‘ .
Contudo, o financiamento dos partidos políticos não constitui o único meio de persuasão do sistema político por parte dos grupos de pressão económicos. Frequentemente, estas associações de interesses organizadas recorrem á utilização de profissionais, responsáveis pelo exercer de lobbying junto das instituições políticas. Esta acção implica o conhecimento dos “corredores do poder”, nomeadamente, a experiência de contacto com a tecnocracia dirigente. No caso dos E.U.A, esta traduz-se na existência de Comités especializados no Congresso Norte-Americano, constituídos por membros não eleitos democraticamente, mas que exercem uma influência substancial sobre os membros do Congresso.
Outro dos métodos frequentemente utilizados passa pelo recurso aos mass media. Na era da sociedade de informação, assente, segundo o Professor Victor Marques dos Santos, no ´...ambiente material de recolhimento, processamento, reprodução e disseminação das ideias consideradas fundamentais ao controlo político-económico, sócio-económico e sócio-cultural inerente, considerado imperativo para a viabilização sustentada do processo.‘ , os global media cada vez mais tendem a moldar a opinião pública. Logo, é importante que os grupos de pressão actuem sobre os meios de comunicação de massas, orientando e coordenando as principais questões em debate, de acordo com os seus interesses particulares, ´ Neste sentido a comunicação social selecciona as perspectivas de análise, hierarquiza as problemáticas (...), estabelece limites paramétricos do seu enquadramento, altera os processos de abordagem, descentra as questões fundamentais, através de tácticas de diversão...‘ .
Finalmente, é importante referir os estudos realizados por Kenneth M. Goldstein. O teórico dá especial relevância a um meio de exercer pressão sobre as instituições políticas, que denomina de grass roots lobbying. ´ Especialmente, grupos de interesse e lobbying estão cada vez mais a fazer uso das novas e mais sofisticadas tecnologias para regar as raízes...‘ , ou seja, tem-se registado o surgimento de várias “organizações ditas da sociedade civil”, patrocinadas pelo poder económico, com vista a proteger os seus interesses.
Face á crise de representatividade dos partidos políticos (crise esta que ocorre não só nos E.U.A) que tem expressão nas elevadas taxas de abstenção, o poder económico tenta competir com os seus rivais, não nas altas instancias, mas na sociedade civil. As recentes manifestações de Seatle colocaram na praça pública as grandes questões sociais e ecológicas, tendo a actividade das grandes empresas transnacionais sido posta em causa por diversos sectores da opinião pública. Em resposta a este fenómeno, os interesses económicos recorrem ao que Vaclav Havel apelidou de “poder dos sem poder”. De acordo com Kenneth Goldstein ´...grande parte das companhias na lista Fortune 500 contratam organizadores de massa a tempo inteiro, e planos de acção a implementar quando necessário. Esforços que, antigamente, eram temporários, deram origem a divisões permanentes e oficiais das companhias. ‘
A influência exercida por parte do grande poder económico, em relação a um poder político cada vez mais enfraquecido gera, segundo a opinião de diversos analistas, graves problemas sociais e ambientais. Uma das principais reivindicações realizadas pelas grandes empresas Norte-Americanas, refere-se á criação de condições fiscais que beneficiem as suas actividades: concessão de benefícios fiscais, de empréstimos a baixos juros e a fundo perdido, ou de fundos financeiros.
Num país (que é o mais rico do mundo) em que não existe um sistema de segurança social pública, a criação de um regime de apoio ás actividades das grandes companhias financiado por fundos públicos, é considerado, por alguns teóricos, um puro acto de expropriação. Segundo Ralph Nader ´ Num contexto em que o P.N.B tende a diminuir, e, em que uma em cada cinco crianças vive na pobreza, seria de esperar que o esforço público se focasse no corte de benefícios ás grandes companhias, e não no corte de despesas de ajuda á população mais necessitada.‘ .
No entanto, a acção do poder económico não visa apenas influenciar a política interna dos Estados, mas também a política externa das organizações internacionais. A existência de problemas globais, leva á necessidade do estabelecimento de medidas, também elas globais. O Protocolo de Quioto, assinado em 1997, no contexto da Convenção Quadro das Alterações Climáticas, poderá ser inserido nesta categoria de medidas que tentam regular e pôr termo a vicissitudes comuns a todo o mundo. A necessidade de controlar o aquecimento global do planeta que, a longo prazo, poderá ser responsável pela inundação de cidades eleitorais, pela esterilização dos terrenos mais férteis, ou por intempéries ainda mais violentas que o El Nino, conduziu á assinatura deste acordo, em que os Estados partes se comprometem a reduzir, até data compreendida entre 2008 e 2012, cerca de 5,2% da emissão de gases. Para entrar em vigor, o Protocolo de Quioto necessita de ser rectificado por cinquenta e cinco Estados.
Em Março de 2001, os E.U.A anunciaram que não iriam rectificar o acordo, argumentando que as medidas consideradas iriam ter graves consequências sobre a economia Norte-Americana. De acordo com o Presidente George W. Bush ´ Nós trabalharemos com os nossos aliados para reduzir os gases de efeito estufa, mas não aceitaremos nada que prejudique a nossa economia e afecte os trabalhadores Norte-Americanos.‘ .
A posição de Bush colocou as negociações internacionais sobre as alterações climáticas numa situação complicada. Em Novembro de 2000, ainda durante a Administração Clinton, o confronto de posição entre os E.U.A e a União Europeia impediu a definição das regras para a aplicação do Protocolo de Quioto. No entanto, com a recusa de rectificação por parte dos E.U.A , todo o acordo poderá cair por terra. Muitos Estados ameaçaram não cumprir os acordos de Quioto, caso a posição da Administração Bush não sofra alterações: afinal, a economia dos outros países também necessita de ser protegida.
A atitude do governo dos E.U.A causou um certo sentimento de indignação na comunidade internacional. As organizações ecologistas foram as mais críticas: segundo Charles Secrett, director da Friends of the Earth ´ Milhões de pessoas tanto nos E.U.A, como no resto do mundo podem perder as suas casas, os seus empregos e até as suas vidas por causa das alterações climáticas. Mas este político ignorante, egoísta e de vistas curtas, há muito enfiado nos bolsos de lobby petrolífero, não se podia ralar menos.‘ . De acordo com o Centre for Responsive Politics, em 1999, as indústrias petrolíferas terão declarado ter gasto cerca de 158 milhões de dólares em actividades de lobbying.
IV
A SUBVERSÃO DO PODER MILITAR POR PARTE DO PODER ECONÓMICO
A queda do Muro de Berlim, e o fim do mundo bipolar, vieram a ter importantes consequências sobre o papel desempenhado pela elite militar Norte-Americana. A fragmentação da Europa de Leste, e do Pacto de Varsóvia foram responsáveis por um novo clima de esperança, que contrastava com o medo do “império do mal soviético”, durante décadas sustentador do complexo militar e industrial. Segundo Alan Wolfe ´...o colapso do comunismo na União Soviética e na Europa de Leste, diminuiu a capacidade das elites Americanas mobilizarem apoio para as despesas militares, com base no argumento da ameaça soviética. A China, que na altura em que Mills escreveu a obra era considerada uma séria ameaça, é agora vista pelos negócios Norte-Americanos, como uma fonte de potencial investimento.‘ .
A consequência imediata das mutações políticas, económicas e sociais verificadas na esfera internacional em finais do século XX, foi a diminuição de proporção da economia Norte-Americana dedicada á defesa. Durante a década de cinquenta, as despesas militares absorviam cerca de 60% de todos os fundos federais, enquanto que, em finais dos anos noventa, estas proporções desceram para os 17%. Aproximadamente três milhões de Americanos prestaram serviço nas Forças Armadas durante a guerra fria. No entanto, com o fim desta, estes índices reduziram-se para metade.
Contudo, o poder militar constitui ainda uma peça bastante importante na persecução dos interesses dos E.U.A. Os planos geo-estratégicos em regiões como Médio Oriente ou os Balcãs, são deste facto um claro exemplo. A utilização de uma vasta força de intervenção militar no Koweit, aquando da invasão do Iraque em 1991, constituiu a reacção da elite do poder Norte-Americana á instabilidade criada na região por Saddam Hussein, instabilidade esta que poderia gerar graves consequências económicas para a potência ocidental (subida dos preços do petróleo). No entanto, alguns críticos das relações internacionais advogam que as intervenções militares incentivadas pelos E.U.A são, em parte, fruto da pressão organizada da indústria militar. Segundo Eduardo Galeano, a acção da NATO na Républica Federal da Jugoslávia serviu de ´...vitrine gigantesca para a exibição e venda de armas.‘ .
Recentemente, o poder militar Norte-Americano foi responsável pela edificação de um plano de luta contra o narco-tráfico na Colômbia. Entitulado de “Plano Colômbia”, este projecto tem como objectivo a eliminação do tráfico de cocaína, realizado pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas). Este plano inclui a concessão de equipamento logístico e militar, capaz de isolar e extinguir a acção dos guerrilheiros. Um dos métodos utilizados na “guerra da droga”, consiste na pulverização de herbicidas e pesticidas que destruam a produção dos vastos campos de coca controlados pelas FARC (os campos controlados pelos grupos para-militares de extrema-direita, apoiados pelo governo Colombiano não sofreram qualquer acção deste género). Os produtos utilizados na destruição da produção de coca, são comercializados pela Monsanto, tendo a empresa , com o Plano Colômbia, obtido cerca de cinco biliões de dólares, em vendas.
As operações de pulverização têm sido alvo de duras críticas por parte da população local. Apesar de se recorrer á utilização de satélites que precisem os alvos a serem atingidos, os pesticidas acabam, devido aos ventos, por se espalharem a campos de cultivo de produtos legais. Segundo José Francisco Tenorio, representante das comunidades indígenas afectadas ´ As nossas produções locais, o nosso único sustento, mandioca, banana, (...), cana do açúcar e milho têm sido destruídas. Os nossos recursos (...), têm sido envenenados, os nossos peixes mortos. Hoje em dia, a fome é o pão nosso de cada dia.‘ .
Curiosamente, a Monsanto está também envolvida na investigação científica, e na produção de produtos agrícolas resistentes aos pesticidas e herbicidas que comercializam. A empresa não é estranha aos corredores do poder em Washington, tendo contribuído com cerca de 90 000 dólares, para a campanha presidencial do actual Presidente, George W. Bush.
Outro dos factos que é necessário ter em conta na análise do poder militar nos E.U.A, é o sistema Péntagono. Desde a Segunda Guerra Mundial, esta instituição tem sido usada como mecanismo primordial para a canalização de subsídios públicos para sectores avançados da indústria, o que constitui a principal razão das poucas alterações que sofreu com o final da guerra fria. No mês passado, George W. Bush veio pedir ao Congresso, a autorização de um suplemento orçamental de 5,6 milhões de dólares, justificado como forma de fazer face a despesas inerentes ao sistema de saúde militar.
Segundo Noam Chomsky ´ O sistema Péntagono tem muitas vantagens, em relação a outras formas de intervenção estatal na economia. Faz com que seja o público a suportar uma grande parte do peso dos custos...‘ . A ideia de criação do Sistema de Defesa Anti-míssil (NMD), constituído por uma rede protectora de satélites e radares sobre o território Norte-Americano, e a instalação de mísseis e radares a bordo de navios e bases, para a protecção dos E.U.A e dos seus aliados, por muita polémica que possa parecer, não constitui uma novidade. A Administração Reagan foi responsável pelo empreendimento de um projecto bastante similar que ficou conhecido como “Guerra das Estrelas”, ´...vendido á opinião pública como um projecto de «defesa», e á comunidade empresarial como subsídio público á tecnologia de ponta.‘ .
Embora o NMD constitua, alegadamente, um meio de protecção dos ataques dos Estados párias (Iraque, Líbia, e Coreia do Norte, por exemplo), o certo é que vai implicar o financiamento de projectos de investigação tecnológica, cujos frutos poderão, eventualmente, ser aplicados na área civil, contribuindo para o desenvolvimento económico do país (a Internet, por exemplo, foi pela primeira vez aplicada no sistema militar).
Pelo demonstrado, podemos concluir que, face á inexistência de ameaças reais, a elite militar nos E.U.A não visa o reforço do seu poder, mas sim do poder económico.
CONCLUSÃO
A análise realizada, permite-nos concluir que a existência de uma elite do poder, seja ela económica (como o é na actualidade), política ou militar, coloca fortemente em causa a noção de democracia. Cada vez mais o poder político encarna a forma de Estado espéctaculo, não orientando as suas acções segundo o interesse geral da população, o qual constitui a legitimação do seu poder. O facto do poder político ser cada vez mais dominado por um calculismo científico exacerbado que se nega a ver pessoas, apenas números, leva-o a ser facilmente penetrável por grupos ditos da sociedade civil, que acabam por moldar a acção do Estado de acordo com os seus interesses particulares. Como afirma George Orwell ´ Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros.‘ .
Face á existência de um poder político supostamente representativo, mas que recusa a interdição constitucional do mandato imperativo, as pessoas passam a considerar a política como um fenómeno que lhes é completamente transcendente. Assistimos assim á emergência de uma despolitização por indiferença, traduzida nas elevadas taxas de abstenção, na não inscrição nas listas eleitorais, ou no desaparecimento do verdadeiro debate político.
As atenções dos cidadãos são dirigidas para outro tipo de assuntos, de acordo com os ditames estabelecidos pelos mass media, intervenientes parte na consolidação do poder económico num projecto capitalista global. Segundo o Professor Victor Marques dos Santos ´ Neste contexto, as referidas modalidades de participação processual, democrática (...) dos indivíduos, desenvolvem-se, em termos de decisão, no plano do mercado de consumo.‘ . Assim, o “Penso, logo existo” de Descartes, é substituído pelo “Tenho, logo existo”.
O controlo das ideias no sentido do consumismo é tal que, quando surge necessidade de apelar ao sentido de dever das pessoas como cidadãs, torna-se imperativo recorrer á linguagem do consumo, isto é, o marketing. As campanhas eleitorais assentes no culto da imagem (tal como os velhos regimes totalitários), passam a depender da procura de fundos, o que dificilmente concilia eficácia e ética. A moralização da vida política deixa de ser pertinente, e o poder torna-se cada vez mais um valor em si mesmo.
BIBLIOGRAFIA
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