Aquilo que se ensina pelo medo, torna o saber temeroso
“A autoridade legalmente atribuida ao docente põe um gosto tão amargo no conhecimento que a ignorância chega a enfeitar-se com os louros da revolta. Quem por gosto transmita o seu saber não precisa de o impor, mas o aquartelamento educativo é de tal ordem que se torna obrigatório uma pessoa instruir por dever, e não por agrado.
Tentem só pregar mútua compreensão entre o professor que penetra na sala de aulas como em jaula de feras e a malta habituadíssima a esquivar-se do chicote e pronta a devorar o domador! Ao mesmo tempo que o autocratismo se vê por toda a parte combatido na Europa ocidental, a escola continua dominada pela tirania. É ver quem há-de ladrar mais rijo, numa arena onde as frustrações se despedaçam.
Nada é mais ignóbil que o medo, rebaixando o homem à situação de animal encurralado, e por mim não concebo que possa ser tolerado, quer pelo aluno, quer pelo professor. A única coisa que pelo terror progride é o próprio terror. Caso as directivas pedagógicas se moessem com vista a privilegiar o princípio que me parece constituir a condição duma verdadeira aprendizagem da vida – acabar com o medo e criar confiança – seria necessário, para o aplicar, fazer da escola um lugar onde não reinem nem autoridade nem submissão, nem fortes nem fracos, nem primeiros nem últimos. Enquanto não formarem uma comunidade de alunos e docentes dedicados a aperfeiçoar aquilo que cada qual tem em si de criativo, bem podem indignar-se com a barbárie em todos os seus aspectos, com o fanatismo religioso, o sectarismo político, a hipocrisia e a corrupção dos governos, porque não conseguirão levar de vencida os fundamentalismos, as máfias da droga e dos negócios – visto existir na organização hierarquizada do ensino um manhoso fermento que predispõe à influência dominante que semelhantes organizações exercem.
Será preciso que o desolador futuro duma vida passada a catar dinheiro mês a mês vos pareça luminoso só porque a sombra do desemprego cresce por toda a parte onde reina o sol mediático do pleno emprego? Nada mata mais seguramente uma pessoa do que isto de contentar-se em sobreviver
Agora que as ideologias de esquerda e de direita derretem ao sol da sua comum mentira, o único critério de inteligência e de acção reside na vida quotidiana de cada qual e na opção, a que todos os instantes o confrontam, entre o qual fortalece a sua própria vida e aquilo que a destrói. Se tantas ideias generosas se tornaram no seu contrário, é porque o comportamento que em prol de tais ideias militava, delas era a negação. Um projecto de autonomia e de emancipação não pode sem vacilar basear-se nesta vontade de poder que continua a imprimir nos gestos o vinco do desprezo, da servidão e da morte.
Não pressinto outra maneira de acabar com o medo, e com a mentira dele resultante, que não seja uma vontade incessantemente reavivada de a pessoa usufruir de si mesma e do mundo. Aprender a desenredar o que nos torna mais vivos daquilo que nos aniquila é a lucidez primeira, a que dá sentido ao conhecimento.
As mais elaboradas técnicas põem ao nosso alcance uma soma considerável de informações. Semelhantes progressos não são de descurar, mas hão-de ser letra morta se uma relação privilegiada entre os educadores e pequenos grupos de alunos não ligar a rede de conhecimentos abstractos ao único “terminal” que nos interessa: aquilo que cada qual deseja fazer da sua vida e do seu destino.
Libertar da sujeição o desejo de saber
A exploração violenta da natureza substituiu o desejo pela sujeição; espalhou por toda a parte a maldição do trabalho manual e intelectual e reduziu a uma actividade marginal a verdadeira riqueza do homem: a capacidade de se recriar, recriando o mundo.
Ao produzirem uma economia que os economiza, a ponto de fazer deles a sombra de si mesmos, os homens obstruiram a sua própria evolução. É por isso que a humanidade tem ainda de ser inventada.
A escola traz consigo o sinal palpável duma fractura no projecto humano. Apreendemos nela, cada vez mais, em que condições e em que altura a criatividade da criança é destruída sob as marteladas do trabalho. A velha litania familiar que reza “trabalha primeiro, logo te divertes” sempe exprimiu a absurdez duma sociedade que prescrevia a renúncia à vida para melhor se consagrar a um labor que a esgotava, deixando aos prazeres apenas a cor da morte.
É necessária toda a parvoíce dos pedagogos especializados para alguém se espantar pelo facto de tantos esforços e canseiras infligidos aos alunos redundarem em tão mediocres resultados. Que esperar quando a mais íntima vontade falta, ou já nem existe?
Fazer da escola um centro de criação do que é vivo, e não a antecâmara duma sociedade parasitária e mercantil
Tendo Charles Fourier observado, durante uma insurreição, com que cuidado e ardor os amotinados arrancavam a calçada duma rua, erguendo em poucas horas uma barricada, comentava ele que teriam sido necessários três dias de trabalho a um rancho de cantoneiros às ordens de um patrão para fazer o mesmo. Os assalariados ter-se-iam limitado a dedicar ao caso o interesse do salário, sendo em contrapartida a paixão da liberdade aquilo que animava os insurrectos.
Só o prazer do individuo ser ele mesmo e de ser para si mesmo poderá dar ao saber esta atracção passional, que explica o esforço sem a recorrência à sujeição.
Tornar-se uma pessoa aquilo que é exige a mais intransigente das resoluções, nisso se impondo constância e obstinação. Se não quisermos resignar-nos a consumir conhecimentos que nos hão-se reduzir ao estado miserável de consumidores, não podemos ignorar, para sair deste atoleiro em que se enterra a sociedade do passado, que temos de tomar a iniciativa dum impulso de sentido contrário. Pois quê! Então vocês estão prontos a combater e esmagar os outros, para arranjarem emprego, e hão-de hesitar em investir essa energia toda numa vida que será todo o emprego que fizerem das vossas próprias pessoas?
Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida, segundo o princípio da inacessivel perfeição que revoga a insatisfação em nome do insaciável”
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