“variações infímas podem alterar irreversivelmente o padrão dos acontecimentos” Uma simples mistificação dos economistas americanos, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias, cientificamente dada a conhecer á Humanidade por Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

OS 4 CAVALEIROS DO APOCALIPSE

José Pacheco Pereira, no "Publico" 21/10/2005

A história da humanidade é a história de três dos quatro cavaleiros do Apocalipse: o da fome, o da peste e o da guerra. O bom cavaleiro, com o cavalo branco, esse não conta. No nosso confortável mundo europeu, 50 anos de paz fizeram-nos esquecer o cavaleiro da guerra, mas ele não se fez esquecer e, nos Balcãs e no Cáucaso, voltou a bater às portas do nosso recanto. Tinha andado por Ásia e África, mas 50 anos não é nada, nós é que pensávamos que era já definitivo. O cavaleiro da fome também está esquecido na Europa. Malthus ameaçou-nos com ele, mas a revolução industrial adiou as suas previsões, e nós, como de costume, pensamos que ele só estaria para lá longe, em África, O da peste espreitou recentemente com a sida e fugiu de novo para a tenebrosa África, a terra de todos os males, pensávamos também nós, seguros da nossa poderosa medicina.

Mas a nossa terra livre de cavaleiros do Apocalipse vai ter em breve a visita de um deles, o da peste, e, sabemos pela história, que qualquer um anuncia os outros, ou abre o caminho aos outros. "Peste" é uma palavra que passou a figura literária, e só nos recantos africanos e nos filmes de ficção científica permanecia no sentido original. É verdade que no "coração da escuridão" vírus demasiado mortíferos continuam a emergir, das margens do rio Ébola, ou numa missão perdida, ou num sítio onde se comem macacos. Mas essas "pestes" não são histórias de sucesso viral: o Ébola, por exemplo, é um vírus pouco eficaz, mata mais depressa do que viaja e por isso elimina tão rapidamente o seu hospedeiro que nunca vai longe. É por isso fácil de conter, contrastando a simples eficácia da gripe.

A gripe é o símbolo da doença benigna, da doença a que nos acostumamos sazonalmente. Toda a gente tem gripe uma vez por ano, e lá nos habituamos à ligeira febre, ao nariz tapado, às dores de garganta, aos arrepios. Falta-se ao emprego um dia ou dois, as crianças não vão à escola com algum contentamento, os namorados insinuam amabilidades como "vou-te pegar a gripe", "pega, pega", os beijos sociais diminuem porque se está constipado. Os hedonistas têm um prazer especial em meter-se na cama, confortados com os seus 37,5º, voltando a uma infância perdida, mas cheia de cuidados maternais. Em suma, uma "fruta da época", como a chuva e o frio.

Os médicos sabem que a gripe comum não é tão benigna como isso e mesmo as estirpes mais pacíficas matam milhares de velhos e doentes todos os anos. Mas, como as mortes do Verão tórrido em França mostraram, é possível morrer muita gente à nossa volta, que só as estatísticas mostram o incremento do trabalho da ceifeira. Só que desta vez pode não ser assim, tudo indica que não seja assim.

Entramos agora no fino e impossível equilíbrio entre o pânico inconsiderado e a legítima preocupação. Como é que devo escrever o que vou escrever? Talvez começando por dizer que há muitas probabilidades de termos uma pandemia de gripe com uma variante viral muito agressiva. Embora o cálculo dessas probabilidades seja muito difícil de fazer, pode-se considerar que, tudo ponderado, é mais provável que haja do que não haja. Claro que também pode não acontecer nada, como quando do susto americano com a "gripe dos porcos" no tempo do Presidente Ford, que acabou por não se verificar. Mas agora tudo indica que se verificará, não sabemos é daqui a quanto tempo, um ano, dez anos? Parece uma questão de tempo. Depois, tudo o resto são incógnitas e patamares que se podem subir ou descer.

Voltamos pois à peste, ao quotidiano da peste. Como o terrorismo, a peste também se modernizou, por linhas de fragilidades muito semelhantes: a sociedade de massas urbanizada, global, dá imensas oportunidades novas à doença, ao mesmo tempo que pareceu eliminar as antigas. Pouco a pouco, à nossa volta, a biologia tumultuosa para os humanos e os seus bichos domésticos começa a especializar-se. Sem a produção de carne e leite em série, a doença das vacas loucas, ou a hecatombe de carneiros provocada pela febre aftosa não teriam levado às imagens do "massacre dos inocentes" em que se converteram muitas quintas modelo da agricultura da PAC.

Graças a Darwin, percebemos hoje muito bem como o sucesso dos vírus se encavalita no nosso mundo urbanizado, na nossa agricultura industrial, nos nossos hábitos de consumo, na sociedade de massas. Para um vírus como o da "gripe das aves", o modo como vivemos é um nicho ecológico excepcional. O vírus veio dessa enorme capoeira e pocilga colectiva que são os campos da província chinesa de Guandong, um enorme pool de variabilidade genética em que o salto entre os animais e os homens é facilitado pela promiscuidade entre espécies. Mas já não precisa de fazer o caminho lento de um barco para a Índia, de uma caravana para o Levante, de um outro barco para Veneza ou Génova, pode voar com as aves selvagens até aos aviários da Europa, ou voar na Cathay Pacific ou na Lufthansa.

Depois de cá chegar, e já cá chegou às aves, poderá ou não demorar um pouco a encontrar outros hospedeiros, poderá ou não dar tempo a que haja vacina, poderá ser de uma estirpe mais ou menos agressiva, matar velhos ou jovens (como a "pneumónica" de 1918), poderá encontrar-nos preparados (tanto quanto podemos em relação a estas eficazes máquinas que são os vírus) ou não. Prevenidos já estamos, resta saber se estamos preparados e parece que não.

Se olharmos para África, onde um vírus que mata mais devagar como o da sida já molda a sociedade, alterando padrões demográficos, enfraquecendo as burocracias de Estados, já de si frágeis, as forças de polícia e segurança, aumentando a conflitualidade, podemos compreender melhor como será perturbador um vírus que mata mais rapidamente, ferindo a sociedade profundamente.

Os estudos mostram como uma pandemia de gripe levará à "nacionalização" dos stocks de medicamentos (dito de outro modo, ou um estado já possui esse stock nos seus armazéns, ou, quando a gripe começar a matar, ninguém lhe vai ceder o seu), à fragilização de polícias e exércitos, à paragem de escolas, casernas, concentrações de multidões (sim, os jogos de futebol também), por aí adiante. Por boas razões, por precaução, e por más, pelo pânico e crescimento da conflitualidade, as semanas que durar a gripe serão de tensão sobre toda a estrutura do Estado "civilizado". Depois passará, deixando os sobreviventes de uma geração imune, até à próxima. Para a democracia, para a nossa civilização, será um teste poderoso.

 
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