A educação para lá do “desenvolvimento”
Rui Canário, no "Notícias da Amadora"
continuação (daqui)
Privilegiar o ter conduz a limitar de modo drástico o nosso campo de autonomia e de realização humana. A organização social subordinada à lógica de produção de mercadorias desvaloriza e elimina tudo o que, sendo do domínio da auto-suficiência, da solidariedade desinteressada e da expressão de si, põe em causa o poder do dinheiro e as várias formas de dominação que o acompanham. Poderá esta verificação inspirar-nos um outro vocabulário para pensar a educação?
A construção histórica das modernas sociedades industriais, ou seja, das sociedades capitalistas (sob a forma de mercado ou de capitalismo de Estado), tem como cerne a transformação de tudo em mercadorias (a começar pelo trabalho humano), visando a acumulação de capital, processo baseado na exploração do trabalho assalariado, com base na apropriação da mais valia. Os ideais do triunfo da Razão e do Progresso, que caracterizam o pensamento iluminista constituem os principais referentes de uma ideologia do desenvolvimento, fundada numa confiança cega nas potencialidades de a Ciência e a Técnica se traduzirem, através das suas aplicações, em níveis crescentes de produção de bens e, idealmente, de um contínuo acréscimo de bem estar para o conjunto da humanidade. Esta ideia de progresso linear, comum ao mundo da biologia e ao mundo da economia, é aceite de forma convergente por figuras tão distintas como Augusto Compte, Darwin e Marx. No elogio fúnebre que fez a Marx, o seu amigo Engels não encontrou melhor forma de o elogiar do que compará-lo a Darwin: um teria descoberto a lei do desenvolvimento da natureza (a evolução das espécies), o outro a lei do desenvolvimento da história humana.
No início dos anos 70, a coincidência do primeiro “choque petrolífero” com as crises de produtividade e de governabilidade das sociedades capitalistas (a ocidente e a leste) marcou o fim de um ciclo marcado pelas “ilusões do progresso” (como lhe chamou Raymond Aron) e pela tentativa de criação de “sociedades da abundância”, em que desapareceria o fosso que separava os países “desenvolvidos” dos países periféricos, marcados pelo “subdesenvolvimento”.
A falência dos Estados de Bem Estar é coincidente com um aumento constante da capacidade de produzir riqueza, com base em acréscimos de produtividade, resultantes de novas formas de organização do trabalho e de incorporação do conhecimento científico e técnico nos processos de produção. Os acréscimos de produtividade, com o enfraquecimento dos movimentos sociais e a mutação das organizações sindicais, traduziram-se num acréscimo da exploração do trabalho (os trabalhadores mais produtivos são, obviamente, os mais explorados), acompanhado de um aprofundamento das desigualdades
O desenvolvimento foi sujeito, enquanto ideologia, a uma forte erosão, como resultado de críticas que, embora divergentes nos seus fundamentos, convergiram nos seus efeitos pela razão simples de que passaram a existir evidências factuais que tornavam impossível a visão dominante até aos anos 70. O desenvolvimento como sistema conceptual e como modelo de referência para pensar e organizar a vida social não foi, no essencial, afectado. A sua sobrevivência foi acompanhada e favorecida por metamorfoses de carácter semântico que, adjectivando o conceito, alimentaram a ilusão de que “um outro” desenvolvimento é possível. Trata-se do mesmo tipo de mistificação que consiste em imaginar que “uma outra globalização” é possível sem que seja posto em causa de forma radical o sistema de exploração do trabalho humano.
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