Excomungados de Abril
Escrito em quinze capítulos, dedicados a outros tantos casos de empresários perseguidos ou expropriados durante o processo revolucionário, este pequeno livro escrito por dois jornalistas aborda retrospectivamente os anos 1974 e 1975, sustentando-se num amplo conjunto de depoimentos colhidos directa ou indirectamente junto de administradores e quadros das principais empresas portuguesas da época.

Palavras como turbilhão, irresponsabilidade, transe, demência, histeria, ou loucura diagnosticam psicanaliticamente os acontecimentos da revolução desvalorizando as suas motivações e protagonistas, representando os empresários como infelizes e inocentes vítimas de um processo irracional manipulado por agitadores calculistas. É sob o signo da estranheza que se aborda, por exemplo, a fiscalização da banca comercial pelos delegados do Banco de Portugal, a actuação de sindicatos e comissões de trabalhadores ou as nacionalizações decretadas pelo Conselho da Revolução, como se alguém tivesse interrompido e alterado subitamente as regras de um jogo em que os empresários portugueses se haviam tornado imbatíveis.
O que em muitos ensaios é lido tragicamente como uma hábil manobra no contexto da Guerra Fria surge aqui na forma de farsa – acentuando a ingenuidade de trabalhadores e militares perante os problemas económicos, sublinhando a imprescindibilidade da hierarquia e das competências dos quadros e administradores das empresas e assumindo o carácter natural dos principais axiomas da economia politica.
Pobre ao nível da interpretação do conjunto do processo revolucionário e da caracterização dos seus momentos e protagonistas, este trabalho de investigação sobretudo jornalística cumpre com mérito assinalável o propósito de representar a revolução de um ponto de vista absolutamente parcial, documentando as mentalidades e a consciência histórica de parte significativas das elites económicas portuguesas.
O que se vê assim analisado não é tanto a história do processo revolucionário – secundarizada por um conjunto de episódios pessoais mais ou menos caricatos e romanceados – mas a relação dos empresários com a memória desse período, numa subtil e trabalhosa operação que em larga medida apaga o que aconteceu, por exemplo, antes de 25 de Abril de 1974.
Nesse sentido, ao situar a revolução no plano dos seus supostos excessos e do seu efeito catastrófico sobre a economia do pais, procurando confundir as memórias dos empresários com a memoria do período propriamente dito, o livro de Filipe Fernandes e de Hermínio Santos revela a subtil ligação entre a revisão da historia portuguesa recente e a legitimação das elites económicas cujo património se recompôs sobretudo a partir do consulado cavaquista.
Como se apenas fosse possível justificar historicamente o seu poder restaurado fazendo da revolução um acidente de percurso, da ordem social que esta veio abalar o estado natural das coisas e da contra-revolução em que vivemos a restauração do que nunca deveria ter sido posto em causa.
Ricardo Noronha
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