Excomungados de Abril
Escrito em quinze capítulos, dedicados a outros tantos casos de empresários perseguidos ou expropriados durante o processo revolucionário, este pequeno livro escrito por dois jornalistas aborda retrospectivamente os anos 1974 e 1975, sustentando-se num amplo conjunto de depoimentos colhidos directa ou indirectamente junto de administradores e quadros das principais empresas portuguesas da época.
As aventuras dos Mello, dos Espírito Santo, de Champalimaud, Alfredo Alves, Abel Pinheiro ou José Miguel Júdice são descritas pelos próprios num tom pessoal, que ajuda a compor da revolução um quadro a duas cores, delineando com nitidez os contornos do confronto entre o poder económico e o poder político-militar, que se vê representado sobretudo na sua faceta repressiva. As prisões de empresários e administradores são amplamente dramatizadas, ao mesmo tempo que escapam ao confronto histórico as acusações de sabotagem económica e conspiração contra a democracia que as motivaram e sem as quais nunca poderiam ser compreendidas.
Palavras como turbilhão, irresponsabilidade, transe, demência, histeria, ou loucura diagnosticam psicanaliticamente os acontecimentos da revolução desvalorizando as suas motivações e protagonistas, representando os empresários como infelizes e inocentes vítimas de um processo irracional manipulado por agitadores calculistas. É sob o signo da estranheza que se aborda, por exemplo, a fiscalização da banca comercial pelos delegados do Banco de Portugal, a actuação de sindicatos e comissões de trabalhadores ou as nacionalizações decretadas pelo Conselho da Revolução, como se alguém tivesse interrompido e alterado subitamente as regras de um jogo em que os empresários portugueses se haviam tornado imbatíveis.
O que em muitos ensaios é lido tragicamente como uma hábil manobra no contexto da Guerra Fria surge aqui na forma de farsa – acentuando a ingenuidade de trabalhadores e militares perante os problemas económicos, sublinhando a imprescindibilidade da hierarquia e das competências dos quadros e administradores das empresas e assumindo o carácter natural dos principais axiomas da economia politica.
Pobre ao nível da interpretação do conjunto do processo revolucionário e da caracterização dos seus momentos e protagonistas, este trabalho de investigação sobretudo jornalística cumpre com mérito assinalável o propósito de representar a revolução de um ponto de vista absolutamente parcial, documentando as mentalidades e a consciência histórica de parte significativas das elites económicas portuguesas.
O que se vê assim analisado não é tanto a história do processo revolucionário – secundarizada por um conjunto de episódios pessoais mais ou menos caricatos e romanceados – mas a relação dos empresários com a memória desse período, numa subtil e trabalhosa operação que em larga medida apaga o que aconteceu, por exemplo, antes de 25 de Abril de 1974.
Nesse sentido, ao situar a revolução no plano dos seus supostos excessos e do seu efeito catastrófico sobre a economia do pais, procurando confundir as memórias dos empresários com a memoria do período propriamente dito, o livro de Filipe Fernandes e de Hermínio Santos revela a subtil ligação entre a revisão da historia portuguesa recente e a legitimação das elites económicas cujo património se recompôs sobretudo a partir do consulado cavaquista.
Como se apenas fosse possível justificar historicamente o seu poder restaurado fazendo da revolução um acidente de percurso, da ordem social que esta veio abalar o estado natural das coisas e da contra-revolução em que vivemos a restauração do que nunca deveria ter sido posto em causa.
Ricardo Noronha
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