Arundhati Roy - O poder público na era do Império
Pediram-me que fale a respeito do “poder público na era do império”. Não costumo fazer o que me dizem, mas por uma feliz casualidade isso é precisamente do que quero falar hoje.
Quando a linguagem foi estripada e dessangrada do seu sentido, o que entendemos por “poder público”? Quando a liberdade significa ocupação; a democracia, capitalismo neoliberal; a reforma, repressão; e palavras como “emancipação” e “missão de paz” nos gelam o sangue; então uma expressão como “poder público” pode significar o que queira cada um. Por exemplo, uma máquina para desenvolver os bíceps ou um produto de limpeza. Por isso, vou ter que definir “poder público” pelo caminho, do modo que, digamos, mais considerar adequado.
Na Índia, a palavra “public” está incorporada na língua hindu. Significa povo. Em hindu temos “sarkar” e “public”, o governo e o povo. Este uso implica a suposição de que o governo é algo aparte de “o povo”. A distinção tem muito a ver com o facto de que a luta pela liberdade na Índia, ainda que magnífica, não foi nem muito menos revolucionária. A elite indiana calçou com facilidade e elegância os sapatos que deixaram os imperialistas britânicos. Uma sociedade extremamente empobrecida e essencialmente feudal converteu‑se num independente e moderno estado‑nação. Hoje, quando passaram cinquenta e sete anos exactos, os verdadeiros vencidos ainda vêem o governo como “mai-baap”, o pai e provedor. O sector ligeiramente mais radical, os que ainda têm fogo nas entranhas, vêem-no como “chor”, o ladrão, o que arrebata todas as coisas.
Seja como for, para a maioria dos indianos, “sarkar” é algo muito diferente de “public”. No entanto, à medida que se sobem os degraus da escala social, a distinção entre “sarkar” e “public” dilui‑se. À elite indiana, como a todas as elites do mundo, custa‑lhe separar‑se do estado. Vê o que vê o estado, pensa como o estado, fala como o estado.
Nos Estados Unidos, por outro lado, a distinção entre “sarkar” e “public” penetrou a níveis muito mais profundos dentro da sociedade. Isto poderia ser indicativo de uma democracia robusta, mas infelizmente o assunto é um pouco mais complicado e menos bonito. Entre outras coisas está relacionado com a intrincada trama de paranóia urdida pelo “sarkar” estadounidense e difundida pelas corporações mediáticas e por Hollywood. Os estadounidenses normais têm sido manipulados até imaginar que são um povo sob cerco cujo único refúgio e protecção provém do seu governo. Se não são os comunistas, é a Al Qaeda. Se não é Cuba, é a Nicarágua. O resultado é que a nação mais poderosa do mundo – com o seu inigualável arsenal, o seu historial de combate e financiamento de inumeráveis guerras, e a única nação na história que fez de facto uso de bombas atómicas – está habitada por uma cidadania aterrorizada que se assusta até da sua sombra. Um povo atado ao estado, não pelas prestações sociais, a previdência pública ou as garantias laborais, mas pelo medo.
Este medo fabricado sinteticamente utiliza‑se para conseguir o apoio do povo a mais actos de agressão. E assim se vai construindo uma espiral de histeria auto‑reprodutora, já calibrada oficialmente pelo governo estadounidense no seu programa Alertas Terroristas em Rutilante Tecnicolor: fúcsia, azul turquesa, rosa salmão.
Aos que a olhamos de fora, esta fusão de “sarkar” e “public” nos EU às vezes torna difícil distinguir entre as acções do governo dos EU e as do povo estadounidense. Esta confusão é o que alimenta o anti‑americanismo no mundo. Então o governo dos EU aferra‑se ao anti‑americanismo e amplifica‑o por meio dos seus leais meios de comunicação. Já conhecem a rotina: «Por que nos odeiam? Odeiam as nossas liberdades»... etc.... etc. Desta forma, reforça‑se a sensação de isolamento da população dos EU e torna ainda mais íntimo o abraço entre “sarkar” e “public”. Como a Capuchinho Vermelho procurando o conforto da cama do lobo.
O uso da ameaça de um inimigo externo para unificar a população a nosso favor é um cavalo velho e cansado, a que sobem os políticos há séculos para chegar ao poder. Mas será que as pessoas normais estão farta desse pobre cavalo velho e estão a procurar outra coisa? Há uma antiga canção de um filme indiano que diz: «yeh public hai, yeh sab jaanti hai» (o povo sim, sabe tudo). Não seria encantador se a canção tivesse razão e os políticos não?
Antes da invasão ilegal do Iraque por Washington, um inquérito da Gallup International indicava que em nenhum país europeu o apoio a uma guerra unilateral superava 11%. A 15 de Fevereiro de 2003, poucas semanas antes da invasão, mais de dez milhões de pessoas manifestaram‑se contra a guerra nos diferentes continentes, incluindo a América do Norte. E mesmo assim os governos de muitos países supostamente democráticos uniram‑se à guerra.
A questão é: a “democracia” é ainda democrática?
Os governos democráticos têm que prestar contas às pessoas que os elegeram? E, crucialmente, o “public” dos países democráticos é responsável pelas acções do seu “sarkar”?
Se nos pomos a pensar, a lógica em que se baseia a guerra contra o terrorismo e a lógica em que se baseia o terrorismo é exactamente a mesma. Ambas obrigam os cidadãos a pagar pelas acções dos seus governos. A Al Qaeda obrigou o povo dos EU a pagar com as suas vidas as acções do seu governo na Palestina, na Arábia Saudita, no Iraque e no Afeganistão. O governo estadounidense obrigou o povo afegão a pagar com milhares de vidas as acções dos taliban, e o povo iraquiano está a pagar com centenas de milhares as acções de Saddam Husein.
A diferença essencial é que ninguém elegeu realmente a Al Qaeda, ou os talibans ou Saddam Husein. Mas o presidente dos Estados Unidos foi eleito (bom... de certa maneira).
Os chefes de governo de Itália, Espanha e Reino Unido tinham ganho eleições. Não poderia dizer-se, então, que os cidadãos destes países são mais responsáveis pelas acções dos seus governos do que o são os iraquianos pelas acções de Saddam Hussein, ou os afegãos pelas dos taliban?
Qual dos seus respectivos deuses decide se esta ou a outra é uma “guerra justa”? George Bush pai disse uma vez: «Eu nunca pedirei desculpas em nome dos EU. Não me importa quais são os factos». Quando o presidente do país mais poderoso do mundo não precisa de se importar com quais são os factos, então pelo menos podemos estar seguros de que entramos na Era do Império.
Assim, que significado tem o poder público na era do império? Tem algum significado? Existe na realidade?
Nestes tempos supostamente democráticos, o pensamento político convencional afirma que o poder público se exerce nas urnas. Dúzias de países de todo o mundo irão às urnas este ano, e a maioria (não todos) terão os governos em quem tenham votado. Mas conseguirão ter os governos que querem?
Na Índia, este ano, votámos a derrota dos nacionalistas hindus. No entanto, mesmo enquanto celebrávamos, sabíamos que no que se refere ao armamento nuclear, ao neoliberalismo, à privatização, à censura, às grandes barragens – em todas as questões importantes, aparte o nacionalismo hindu – o Partido do Congresso e o BJP não apresentam grandes diferenças ideológicas. Sabemos também que foi o legado de cinquenta anos do Partido do Congresso que abriu caminho, culturalmente e politicamente, à extrema direita. Também foi o Partido do Congresso que abriu os mercados da Índia à globalização corporativa.
Na sua campanha eleitoral, o Partido do Congresso assegurava que estava disposto a rever parte da sua política económica. Milhões de pessoas, das mais pobres da Índia, saíram a votar em massa nestas eleições. O espectáculo da grande democracia indiana foi televisionada ao vivo: os agricultores pobres, os anciãos e enfermos, as mulheres cobertas de véus com as suas formosas jóias de prata, indo aos colégios eleitorais sobre elefantes, camelos e carros de bois num espectáculo encantadoramente anacrónico. Na contramão das predições de todos os especialistas e sondagens da Índia, o Congresso obteve mais votos do que nenhum outro partido. Os partidos comunistas conseguiram o maior número de votos da sua história. Os pobres da Índia votaram claramente na contramão das “reformas” económicas do neoliberalismo e do fascismo crescente. Quanto se contaram os votos, os meios de comunicação corporativos despacharam‑nos como figurantes baratos numa filmagem. Os canais de televisão apresentavam telas divididas: em metade da tela aparecia o caos que se tinha formado à porta da residência de Sonia Gandhi, líder do Partido do Congresso, enquanto se improvisava um governo de coligação.
A outra metade mostrava corretores de bolsa frenéticos nas imediações da Bolsa de Bombaim, entrando em pânico ao pensar que o Partido do Congresso poderia de facto honrar as suas promessas e implementar o seu mandato eleitoral. Vimos o índice de bolsa Sensex subir, baixar e dar tombos. Os meios de comunicação, cujas próprias acções estavam a cair a pique, relataram o colapso da bolsa como se o Paquistão acabasse de lançar mísseis balísticos intercontinentais sobre Nova Delhi.
Antes inclusive da tomada de posse do novo governo, houve políticos de primeira fila do Partido do Congresso que fizeram declarações públicas em que asseguravam aos investidores e aos mídia que a privatização dos serviços públicos continuaria. Entretanto, o BJP, ao passar à oposição, começou a pôr objecções, de forma tão cínica como cómica, ao investimento estrangeiro directo e a uma maior abertura dos mercados indianos.
Esta é a dialéctica espúria em evolução da democracia eleitoral.
Quanto aos indianos pobres, logo que providenciaram os votos, espera‑se que desandem para casa, que a política será decidida apesar deles.
E nas eleições dos EU? Têm opção real os eleitores?
É verdade que se John Kerry chega a ser presidente, mudarão alguns dos magnatas do petróleo e fundamentalistas cristãos da Casa Branca. Serão poucos os que lamentarão ver pelas costas Dick Cheney, Donald Rumsfeld ou John Ashcroft e a sua descarada bufonaria. O que preocupa realmente é que as suas políticas continuem com a nova administração. Que tenhamos Bushismo sem Bush.
Os que estão realmente no poder – os banqueiros, administradores, etc. – não são vulneráveis ao voto (... e de qualquer modo financiam ambos os lados).
Por desgraça, a importância das eleições estadounidenses degenerou num concurso de personalidades. Uma briga para dirimir quem seria o melhor capataz do império. John Kerry crê na ideia do império com o mesmo fervor que George Bush.
O sistema político dos EU está cuidadosamente confeccionado para impedir que qualquer um que questione a bondade natural da estrutura de poder militar‑industrial‑corporativa possa entrar pelas portas do poder.
Neste contexto, não surpreende ninguém que nestas eleições os dois adversários sejam licenciados da Universidade de Yale, ambos membros da sociedade secreta “Skull and Bones”, ambos milionários, ambos jogando aos soldadinhos, ambos apregoando a guerra e discutindo de maneira quase pueril sobre qual dos dois conduzirá com mais eficiência a guerra contra o terrorismo.
Tal como o presidente Bill Clinton antes dele, Kerry continuará a expansão do poder económico e militar dos EU no mundo. Diz que teria votado a favor da guerra de Bush no Iraque, mesmo se tivesse sabido que o Iraque não tinha armas de destruição em massa. Promete destinar mais tropas ao Iraque. Recentemente disse que apoia cem por cento a política de Bush em relação a Israel e Ariel Sharon. Diz que manterá 98% dos cortes fiscais de Bush.
Assim, sob a superfície do histérico intercâmbio de insultos, o consenso é quase absoluto. Parece que, mesmo que o eleitorado americano vote em Kerry, ainda assim obterá Bush. O presidente John Kerbush ou o presidente George Berry.
Não é uma escolha real. É uma escolha aparente. É como eleger uma marca de detergente. Quer se compre Tide quer se compre Ivory Snow, os dois são de Procter & Gamble.
Isto não significa que a posição de cada um não tenha os seus matizes, que o Congresso e o BJP, os neolaboristas e os conservadores, os democratas e os republicanos sejam o mesmo. Claro que não o são. Também não o são Tide e Ivory Snow: Tide tem oxigénio activo e Ivory Snow é um sabão suave.
Na Índia, há diferenças entre um partido abertamente fascista (o BJP) e outro que teimosamente põe uma comunidade contra outra (Congresso), semeando as sementes do comunalismo que depois o BJP habilmente colhe.
Existem diferenças nos níveis de inteligência e insensibilidade dos actuais candidatos a presidente dos EU. O movimento contra a guerra nos EU realizou um trabalho extraordinário ao pôr de manifesto as mentiras e a venalidade que deram lugar à invasão do Iraque, apesar da propaganda e intimidação que enfrentavam.
Esta acção prestou um grande serviço não só ao povo estadounidense, mas ao mundo inteiro. Mas agora, se o movimento contra a guerra se une abertamente à campanha de Kerry, o resto do mundo pensará que está de acordo com a sua política de imperialismo “sensível”. É preferível o imperialismo dos EEUU se o apoiam a ONU e os países europeus? É preferível que a ONU peça soldados à Índia e ao Paquistão para que matem e morram no Iraque em lugar dos soldados estadounidenses? É verdade que a única mudança que podem esperar os iraquianos é que as companhias francesas, alemãs e russas participem no saque do seu país?
É isto melhor ou pior para os que vivemos em nações vassalas? É melhor para o mundo ter um imperador mais esperto no poder, ou um mais estúpido? É essa a nossa única alternativa?
Perdoem-me, já sei que estas são perguntas incómodas, inclusive brutais, mas é necessário colocá-las.
A verdade é que a democracia eleitoral converteu‑se num processo de manipulação cínica. Oferece um espaço político muito reduzido, e seria ingénuo acreditar que neste espaço há opções reais.
A crise da democracia moderna é profunda.
No palco global, para além da jurisdição dos governos soberanos, os instrumentos internacionais de comércio e finanças supervisionam um complexo sistema de leis multilaterais e acordos que consolidaram um sistema de apropriação que faria envergonhar o colonialismo. Este sistema permite a entrada e saída sem restrições de quantidades ingentes de capital especulativo – dinheiro quente – dos países do terceiro mundo, que acaba praticamente por ditar a sua política económica. Utilizando a ameaça da fuga de capitais como alavanca, o capital internacional penetra cada vez mais em todos os níveis destas economias. As gigantes corporações transnacionais estão a tomar as rédeas das suas infra-estruturas essenciais e dos seus recursos naturais, dos seus minerais, da sua água, da sua electricidade. A Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e outras instituições financeiras como o Banco Asiático de Desenvolvimento, praticamente escrevem a política económica e a legislação parlamentar. Com uma combinação mortífera de arrogância e falta de escrúpulos, brandem os seus martelos em sociedades historicamente complexas, frágeis, interdependentes, e devastam‑nas.
Tudo isto, na verdade, sob o alegre ondear do cartaz da “reforma”.
Como consequência desta reforma, em África, Ásia e América latina, milhares de negócios e indústrias de pequena envergadura quebraram. Milhões de trabalhadores e agricultores perderam os seus empregos e as suas terras.
A revista The Spectator, de Londres, assegura-nos que «vivemos na era mais feliz, sã e pacífica da história da humanidade». Milhares de milhões de pessoas perguntariam de que "nós" se fala? Onde vivem? Como se chamam?
O que há que compreender é que a democracia moderna está cimentada por uma aceitação quase religiosa do estado‑nação. Mas a globalização das corporações não o está. O capital líquido não o está. Portanto, ainda que o capital requeira o poder de coerção do estado‑nação para reprimir as revoltas nos quartéis dos servos, o sistema garante que nenhuma nação possa opor-se à globalização por sua conta e risco.
Uma mudança radical não pode ser nem será nunca algo negociado pelos governos; só pode ser executada pelo povo. Pelo público. Um público capaz de dar a mão através das fronteiras.
Assim, quando falamos do “poder público na era do império”, espero que não pareça presunçoso assumir que a única coisa que vale a pena debater a sério é o poder de um público dissidente. um público que está em desacordo com o próprio conceito de império. Um público que enfrenta os que ocupam o poder: os governos e instituições internacionais, nacionais, regionais ou estaduais que apoiam e prestam serviços ao império.
Quais são as vias de protesto que podem empregar as pessoas que desejam resistir ao império? Quando digo “resistir” não me refiro só a expressar desacordo, mas a forçar uma mudança real. O império tem uma ampla gama de cartões de visita. Utiliza diferentes armas para forçar a abertura de diferentes mercados. Já sabem, o livro de cheques e o míssil de cruzeiro.
Para os pobres de muitos países, o império não aparece sempre em forma de mísseis ou tanques, como no Iraque, no Afeganistão ou no Vietname. Aparece nas suas vidas em forma de avatares muito locais – pela perda de emprego, pelo envio de recibos da luz por pagar, pelos cortes no fornecimento de água, por despejos das suas casas e expulsos das suas terras. Tudo isto supervisionado pela maquinaria repressora do estado, a polícia, o exército, o poder judicial. Trata-se de um processo de empobrecimento implacável com que os pobres estão familiarizados historicamente. O que faz o império é reforçar e exacerbar as desigualdades já existentes.
Mesmo até há pouco tempo, as pessoas tinham dificuldade em ver-se a si mesmas como vítimas das conquistas do império. Mas actualmente os conflitos locais estão a ver o seu próprio papel com crescente clareza. Por muito grandiloquente que soe, a verdade é que estão a enfrentar o império, cada um à sua maneira, numa multiplicidade de maneiras. De modo diferente no Iraque, na África do Sul, na Índia, na Argentina e, já agora, nas ruas da Europa e dos Estados Unidos.
Os movimentos de resistência de massas, os activistas, jornalistas, artistas e cineastas uniram‑se para despir o império do seu brilho. Interligaram os pontos, converteram os gráficos de cash‑flow e os discursos dos conselhos de administração em histórias reais sobre pessoas reais e desespero real. Demonstraram como o projecto neoliberal custou às pessoas as suas casas, as suas terras, os seus empregos, a sua liberdade, a sua dignidade. Fizeram tangível o intangível. O que antes parecia um inimigo incorpóreo é agora corpóreo.
Isto é uma grande vitória, forjada graças à união de grupos políticos diferentes, com estratégias muito variadas. Mas o que todos compreenderam é que o objecto da sua raiva, do seu activismo e do seu empenho é o mesmo. Este foi o princípio da verdadeira globalização. A globalização da inconformidade.
Em geral, hoje em dia, há dois tipos de movimentos de resistência de massas nos países do terceiro mundo. O movimento dos sem terra no Brasil, o movimento anti‑barragens na Índia, os zapatistas no México, o foro anti-privatização na África do Sul, e centenas de outros, estão a lutar contra os seus próprios governos soberanos, que passaram a ser agentes do projecto neoliberal. A maior parte destes são conflitos radicais, em que se luta por mudar a estrutura e o modelo escolhiido para o “desenvolvimento” das suas sociedades.
Depois há aqueles que lutam contra ocupações neocoloniais formais e brutais em territórios disputados, cujas fronteiras foram desenhadas pelas potências imperialistas no século passado. Os povos da Palestina, do Tibete, da Chechénia, de Cachemira e de vários estados do nordeste da Índia mantêm uma luta pela autodeterminação.
Algumas destas lutas podem ter sido radicais, e inclusive revolucionárias, nos seus começos, mas com frequência a brutalidade da repressão com que se defrontam empurra‑os para áreas conservadoras e inclusive retrógradas, em que as estratégias de violência e a linguagem de nacionalismo religioso e cultural que empregam são idênticas às dos estados que pretendem substituir.
Muitos dos soldados rasos destas contendas descobrirão, como aqueles que lutaram contra o apartheid na África do Sul, que uma vez que vençam a ocupação, vão ter outra guerra em mãos, uma guerra contra o colonialismo económico encoberto.
Entretanto, à medida que o abismo entre ricos e pobres se aprofunda e a batalha pelo controle dos recursos mundiais se intensifica, o colonialismo económico por meio da agressão militar formal está a ensaiar um regresso.
O Iraque de hoje proporciona uma ilustração trágica deste processo. Uma invasão ilegal. Uma ocupação brutal em nome da libertação. A reelaboração de leis que permitem a apropriação desavergonhada da riqueza e dos recursos do país pelas corporações aliadas à ocupação, e agora a farsa de um “governo iraquiano” local.
Por estas razões, é absurdo condenar a resistência à ocupação do Iraque pelos EU por estar organizada por terroristas, insurgentes ou partidários de Saddam Hussein. Afinal de contas, se alguém invadisse e ocupasse os Estados Unidos, seriam todos os que lutassem pela sua libertação terroristas, insurgentes ou bushistas?
A resistência iraquiana luta na frente da batalha contra o império, e por isso a sua luta é a nossa luta.
Como a maioria dos movimentos de resistência, está formada por um leque heterogéneo de variadas facções. Antigos baathistas, liberais, islamitas, colaboracionistas descontentes, comunistas, etc. Como é de esperar, está cheio de oportunismo, rivalidades locais, demagogia e delinquência. Mas se só vamos apoiar os movimentos imaculados, então nenhuma resistência merecerá a nossa pureza.
Isto não significa que não devamos criticar nunca os movimentos de resistência. Muitos deles padecem de falta de democracia, de idolatria dos seus líderes, de falta de transparência, de falta de visão e direcção. Mas sobretudo sofrem pela difamação, pela repressão e pela falta de recursos.
Antes de decidir como uma resistência iraquiana imaculada deveria dirigir a sua batalha laica, feminista, democrática e não violenta, deveríamos reforçar a resistência pelo nosso lado, obrigando os EU e os seus aliados a retirar-se do Iraque.
O primeiro confronto militar que se deu nos EU entre o movimento para a justiça global e a junta neoliberal teve lugar na famosa conferência da OMC em Seattle, em Dezembro de 1999. Para muitos movimentos de massas em países em via de desenvolvimento que levavam muito tempo travando batalhas isoladas e solitárias, Seattle foi o primeiro sinal de alívio, que demonstrava que a sua raiva e a sua visão de um mundo diferente era partilhada por pessoas dos países imperialistas.
Em Janeiro de 2001, em Porto Alegre, no Brasil, reuniram-se 20.000 activistas, estudantes, cineastas – algumas das melhores mentes do mundo – para pôr em comum as suas experiências e trocar ideias sobre como defrontar o império. Assim nasceu o já histórico Fórum Social Mundial. Esta era a primeira reunião oficial de um estimulante, anárquico, não doutrinado, novo tipo de “poder público”. O lema do FSM é "Outro mundo é possível". O foro converteu‑se numa plataforma em que centenas de conversas, debates e seminários ajudaram a temperar e refinar uma visão de como seria esse mundo.
Em Janeiro de 2004, celebrou-se o quarto FSM em Mumbai, na Índia, a que foram 200.000 delegados. Eu nunca tinha participado numa reunião tão vibrante. Uma das provas do sucesso do foro social é que os meios de comunicação principais da Índia o ignoraram completamente. Mas agora o FSM está ameaçado pelo seu próprio sucesso. O ambiente seguro, aberto e lúdico do foro permitiu participar e deu voz a políticos e organizações não governamentais implicados nos sistemas políticos e económicos a que se opõe o foro.
Outro perigo é que o FSM, cujo papel foi tão vital no movimento pela justiça global, corre o risco de converter-se num fim em si mesmo. Somente organizá-lo todos os anos consome as energias de alguns dos melhores activistas que temos. Se as conversas em torno da resistência substituem a autêntica desobediência civil, o FSM poderia tornar-se em algo valioso para aqueles contra quem se criou. O foro deve‑se celebrar e tem que crescer, mas temos que encontrar formas de canalizar essas conversas para acções concretas.
À medida que os movimentos de resistência se estenderam cruzando fronteiras e começaram a constituir uma ameaça real, os governos desenvolveram as suas próprias estratégias para derrotá-los, que vão da assimilação à repressão.
Vou falar de três dos perigos actuais que afectam aos movimentos de resistência: o difícil ponto de encontro entre os movimentos de massas e os meios de comunicação de massas; os riscos da ONG-ização da resistência; e o confronto entre os movimentos de resistência e os estados cada vez mais repressivos.
O lugar em que os meios de massa se encontram com os movimentos de massas é complicado.
Os governos deram‑se conta de que meios que funcionam de crise em crise, não podem permitir‑se ficar muito tempo no mesmo lugar. Tal como os negócios requerem rotatividade de dinheiro, os meios requerem rotatividade de crise. Países inteiros convertem‑se em notícias passadas. Deixam de existir e a escuridão torna‑se mais profunda do que antes de os focos brilharem brevemente sobre eles. Vimos isso acontecer no Afeganistão quando os soviéticos se retiraram, e agora, uma vez que a operação Liberdade Duradoura pôs Hamid Karzai, da CIA, no poder, o Afeganistão foi entregue aos seus senhores da guerra uma vez mais.
No Iraque instalou‑se outro agente da CIA, Iyad Allawi, assim talvez tenha chegado a hora de os meios se irem embora dali também.
Enquanto os governos refinam a arte de esperar que passe cada crise, os movimentos de resistência estão a enredar‑se cada vez mais numa espiral de produção de crise, procurando as formas de fabricá-las em formatos de fácil consumo à medida dos espectadores.
Todo o movimento popular que se respeite, todo o “tema”, tem de ter o seu próprio balão publicitário no ar anunciando a sua marca e seu propósito.
Por esta razão, os mortos de fome são mais eficazes à hora de dar publicidade à pobreza do que milhões de pessoas desnutridas, que não fazem manchete. As barragens não são merecedoras de notícias até que a devastação que produzem fica bem na televisão. (E nessa altura já é demasiado tarde).
Passar dias a fio de pé na água enquanto se vai enchendo a barragem, vendo a própria casa e pertences boiando para protestar contra uma grande barragem, costumava ser uma estratégia eficaz, mas já não o é. Os meios estão mortalmente aborrecidos dessa. Assim, para capturar a sua atenção, as centenas de milhares de pessoas deslocadas pelas represas terão que procurar novos truques ou abandonar a luta.
As concentrações coloridas e as manifestações de fim de semana são essenciais, mas por si sós não são o bastante potentes para parar as guerras. As guerras só terminarão quando os soldados se neguem a lutar, quando os trabalhadores se neguem a carregar armas nos navios e aviões, quando o povo boicote os centros económicos do império disseminados por todo o globo.
Se queremos reclamar o espaço da desobediência civil, temos que nos liberar da tirania do jornalismo de crise com o seu medo ao mundano. Temos que usar a nossa experiência, a nossa imaginação e a nossa arte para interrogar os instrumentos do estado que garantem que a “normalidade” seja o que é: cruel, injusta, inaceitável. Temos que sacar à luz as políticas e processos que fazem que as coisas de cada dia – a comida, a água, a habitação e a dignidade – sejam um sonho distante para as pessoas normais. O verdadeiro ataque preventivo é compreender que as guerras são o resultado final de uma paz imperfeita e injusta.
No que se refere aos movimentos de resistência, a verdade é que não há cobertura dos meios comparável à força das massas em acção sobre o terreno. Não há realmente outra opção que a fatigante mobilização política ao velho estilo.
A globalização das corporações aumentou a distância entre os que tomam as decisões e os que sofrem as sequelas dessas decisões. Os foros como o FSM permitem aos movimentos locais de resistência reduzir essa distância e tomar contacto com os movimentos correspondentes nos países ricos. Esta é uma aliança importante e formidável. Por exemplo, quando a primeira barragem privada da Índia, a barragem de Maheshwar, estava em construção, as alianças criadas entre a Narmada Bachao Andolaan (NBA), a organização alemã Urgewald, a Declaração de Berna na Suíça e a Rede Internacional Rivers em Berkeley nos EEUU, uniram-se para conseguir que uma série de bancos internacionais e corporações abandonassem o projecto. Isto não teria sido possível se não tivesse existido sobre o terreno um movimento de resistência sólido como uma pedra. A voz desse movimento local viu‑se amplificada pelos que os apoiavam a nível global, causando a deserção dos investidores, envergonhados.
Se se formassem infinitas alianças similares, dirigidas a projectos específicos e a corporações específicas, poder‑se‑ia criar um mundo diferente. Deveríamos começar pelas corporações que faziam negócios com Saddam Hussein e agora se aproveitam da devastação e ocupação do Iraque.
Outro perigo que ameaça aos movimentos de massas é a ONG-ização da resistência. Será fácil distorcer o que vou dizer para que pareça uma acusação a todas as ONG. Isso seria falso. Nas sujas águas das falsas ONG montadas para chupar subvenções ou iludir impostos (em estados como Bihar são dados como dote) também existem ONG que realizam trabalho valioso. Mas é importante observar o fenómeno das ONG num contexto político mais amplo.
Na Índia, por exemplo, o apogeu das ONG subvencionadas começou no final dos anos 80 e nos 90, coincidindo com a abertura dos mercados indianos ao neoliberalismo. Naquele momento, o estado indiano, cumprindo os requisitos do ajuste estrutural correspondente, estava retirando o seu apoio financeiro ao desenvolvimento rural, à agricultura, à energia, ao transporte e à saúde pública. À medida que o estado abdicava da sua função tradicional, as ONG puseram‑se a trabalhar nestas áreas específicas. A diferença, evidentemente, é que os fundos que têm à sua disposição são uma fracção minúscula do corte que se realizou na despesa pública. A maioria das grandes ONG subvencionadas estão financiadas e patrocinadas pelas agências de ajuda e desenvolvimento, que por sua vez dependem para o seu financiamento dos governos ocidentais, do Banco Mundial, da ONU e de algumas corporações multinacionais. Ainda que não sejam exactamente as mesmas agências, fazem certamente parte da mesma formação política que está à solta, que supervisiona o projecto neoliberal e que exige à partida o corte drástico das despesas públicas.
Qual é a razão para que estas agências financiem as ONG? Poderia ser por causa do antiquado zelo missionário? Sentimento de culpa? Na realidade, é algo mais do que isso. As ONG dão a impressão de estar a encher o vácuo criado pelo estado em retirada. E estão, mas de uma forma materialmente inconsequente. A sua contribuição real é que por meio delas se dilui a raiva política e distribuem como assistência ou caridade o que as pessoas deveriam ter por direito.
As ONG alteram a psique pública. Convertem as pessoas em vítimas dependentes e limam as pontas da resistência política. As ONG formam uma espécie de pára‑choques entre o “sarkar” e o “public”. Entre o império e os seus súbditos. Converteram-se em árbitros, intérpretes, mediadores.
Em última instância, as ONG são responsáveis das suas acções ante os que as financiam, não ante as pessoas com que trabalham. São o que os botânicos chamariam uma espécie indicadora. É quase como se quanto mais devastação produz o neoliberalismo, mais ONG surgem. Não há ilustração mais pertinente do que o fenómeno dos EU preparando-se para invadir um país e simultaneamente preparando as ONG para ir e limpar a devastação.
Em ordem a assegurar que o seu financiamento não é posto em causa e que os governos dos países onde trabalham lhes permitam actuar, as ONG têm que apresentar o seu trabalho dentro de um marco superficial mais ou menos isento de contexto histórico ou político. Pelo menos, de um contexto histórico ou político inconveniente.
Relatórios de socorro apolíticos (e portanto, na realidade, extremamente políticos) dos países pobres e das regiões em guerra acabam por fazer as pessoas (escuras) daqueles países (escuros) parecer vítimas patológicas. Outro indiano desnutrido, outro etíope que morre de fome, outro campo de refugiados afegãos, outro sudanês mutilado... a precisar da ajuda do homem branco. Estas imagens reforçam sem querer os estereótipos racistas e reafirmam as façanhas, o conforto e a compaixão (o amor tenaz) da civilização ocidental. São os missionários seculares do mundo moderno.
Eventualmente – numa escala mais pequena, mas de uma forma mais insidiosa – o capital de que dispõem as ONG tem a mesma função na política alternativa que o capital especulativo que entra e sai das economias dos países pobres: começa a ditar a ordem do dia, transforma o conflito em negociação, despolitiza a resistência, interfere com os movimentos populares locais que tradicionalmente se mantiveram por si sós. As ONG dispõem de fundos para dar empregos a pessoas que, a não ser assim, trabalhariam nos movimentos de resistência, mas que desta maneira sentem que estão a fazer algum bem imediato e criativo (e ganhando a vida enquanto o fazem). A autêntica resistência política não tem desses atalhos.
A ONG-ização da política ameaça fazer da resistência um trabalho cortês, razoável, com o seu salário e a sua jornada das 9 às 5, mais alguns extras. A verdadeira resistência tem verdadeiras consequências. E nenhum salário.
Assim chegamos a um terceiro perigo que quero mencionar hoje: o carácter letal do confronto real entre os movimentos de resistência e os estados cada vez mais repressivos. Entre o poder público e os agentes do império.
Sempre que a resistência civil mostrou o mais ínfimo sinal de evoluir de uma acção simbólica para algo que seja remotamente ameaçador, a repressão é desapiedada. Vimos o que ocorreu nas manifestações de Seattle, Miami, Göthenberg, Génova.
Nos Estados Unidos têm o USA PATRIOT Act, que se tornou num carimbo para a elaboração de leis anti‑terroristas promulgadas em todo mundo. As liberdades estão a ser limitadas sob o pretexto de proteger a liberdade. E uma vez que cedemos as nossas liberdades, será necessária uma revolução para conseguir que nos sejam devolvidas.
Alguns governos têm muita experiência em limitar liberdades e continuar a cheirar bem. O governo indiano, veterano neste jogo, alumia o caminho.
Ao longo dos anos, o governo indiano promulgou uma infinidade de leis que lhe permitem tratar quase qualquer pessoa como terrorista, insurgente, militante. Temos a Lei de Poderes Especiais das Forças Armadas, a Lei de Segurança Pública, a Lei de Segurança de Áreas Especiais, a Lei de Gangues, a Lei de Áreas Terroristas e Perturbadas (que oficialmente já não está em vigor, mas ainda há pessoas à espera de juízo por sua causa) e, a mais recente, a POTA (a Prevention of Terrorism Act [Lei de Prevenção do Terrorismo]), o antibiótico de amplo espectro para a doença da dissidência.
Também se estão a tomar outras medidas, como sentenças de tribunais cujo efeito é subtrair a liberdade de expressão, o direito dos funcionários públicos à greve, o direito à vida e ao sustento. Na Índia, os tribunais começaram a micro‑dirigir as nossas vidas. Ainda por cima, criticar os tribunais é um delito.
Mas voltando às iniciativas contra o terrorismo, nos últimos dez anos o número de pessoas que morreram às mãos da polícia e das forças de segurança atinge as dezenas de milhares. No estado de Andhra Pradesh (a menina bonita da globalização corporativa na Índia) morre em cada ano uma média de 200 “extremistas” no que se costumam chamar “confrontros”. A polícia de Bombaim vangloria‑se do número de “ganguesteres” que mataram nestes “tiroteios”. Em Cachemira, cuja situação é quase de guerra, morreram umas 80.000 pessoas desde 1989. Milhares de pessoas simplesmente têm “desaparecido”. Nas províncias do nordeste a situação é similar.
Nos últimos anos a polícia indiana abriu fogo contra pessoas desarmadas, na sua maioria das castas dalit e adivasi. O seu método preferido é matá-los e a seguir chamá-los de terroristas. A Índia não é a única, na verdadeiro. Vimos ocorrer o mesmo em países como a Bolívia, o Chile e a África do Sul. Na era do neoliberalismo, a pobreza é um crime e protestar contra ela define‑se cada vez com mais frequência como terrorismo.
Na Índia, a POTA (Lei de Prevenção do Terrorismo) denomina-se com frequência Lei de Produção do Terrorismo. É uma lei versátil, um padrão único que pode aplicar-se a qualquer um, desde um agente da Al Qaeda a um motorista de autocarro descontente. Como é o caso de todas as leis contra o terrorismo, o genial da POTA é que pode ser o que queira o governo. Depois do pogromo de 2002 assistido pelo estado em Gujarat, em que se calcula que 2.000 muçulmanos foram assassinados brutalmente por multidões indianas e 150.000 tiveram que abandonar os seus lares, 287 pessoas foram acusadas sob a POTA, das quais 286 são muçulmanas e uma é sikh.
A POTA permite utilizar como prova num julgamento as confissões extraídas enquanto o réu se encontra em custódia da polícia. Na prática, a tortura tende a substituir a investigação. O Centro de Documentação sobre Direitos Humanos do Sul da Ásia informa que a Índia apresenta o número mais alto do mundo de falecimentos em custódia e sob tortura. Os arquivos do governo indicam que só em 2002 houve 1.307 mortes em custódia judicial.
Faz uns meses fiz parte de um júri sob a POTA. Ao longo de dois dias escutámos depoimentos pungentes do que está a acontecer na nossa magnífica democracia. Há de tudo – desde pessoas a quem obrigam a beber urina, obrigadas a despir‑se, humilhadas, que recebem choques eléctricos, são queimadas com pontas de cigarros, em quem inserem barras de ferro no ânus, até pessoas que são espancadas e mortas a pontapés.
O novo governo prometeu abolir a POTA. Ficaria surpreendida que isso acontecesse antes de outra legislação similar ser aprovada com um nome diferente. Se não é a POTA será a MOTA ou algo assim.
Quando se fecham todas as vias à dissidência não violenta e se acusa de terrorista a qualquer pessoa que protesta contra a violação dos direitos humanos, deveríamos realmente surpreender-nos se amplas zonas do país são invadidas por pessoas que crêem na luta armada e estão mais ou menos fora do controle do estado? Isto ocorre em Cachemira, nas províncias do nordeste, em grandes comarcas de Madhia Pradesh, Chattisgarh, Jharkhand e Andhra Pradesh. As pessoas normais destas regiões estao entaladas entre a violência dos militantes e a do estado.
Em Cachemira, o exército indiano calcula que entre 3.000 e 4.000 militantes operam em qualquer momento. Com o objecto de controlá-los, o governo indiano envia uns 500.000 soldados. Está claro que o exército não só pretende controlar aos militantes, mas toda uma população de infelizes que vêem o exército indiano como uma força de ocupação.
A Lei de Poderes Especiais das Forças Armadas permite não só aos oficiais de alta casta, mas inclusive aos suboficiais do exército, utilizar a força e até matar qualquer pessoa sob suspeita de alterar a ordem pública. Primeiro impôs‑se em certos distritos do estado de Manipur em 1958. Hoje em dia aplica‑se em praticamente todo o nordeste e em Cachemira. A documentação de casos de tortura, desaparecimentos, mortes em custódia, violações e execuções sumárias às mãos das forças de segurança é capaz de revoltar o estômago a qualquer um.
Em Andhra Pradesh, no coração da Índia, o grupo militante Marxist-Leninist People's War Group – que durante anos esteve empenhado numa violenta luta armada e que foi o principal alvo de muitos dos falsos “encontros” da polícia de Andhra – celebrou o seu primeiro comício no dia 28 de Julho de 2004, na cidade de Warangal.
Assistiram à concentração centenas de milhares de pessoas. Segundo a POTA, todos eles são terroristas. Vão detê-los a todos em algum equivalente indiano da Baía de Guantánamo?
Todo o nordeste da Índia e o vale de Cachemira estão em fermentação. Que vai fazer o governo com estes milhões de pessoas?
Não há no mundo hoje um tema de debate tão crucial como a questão das estratégias de resistência. E a escolha de estratégias não está inteiramente nas mãos do “public”. Também está nas mãos do “sarkar”.
No fim de contas, quando os EU invadem e ocupam o Iraque como o fizeram, com uma força militar tão desmesurada, pode‑se pedir que a resistência seja de tipo militar convencional? Para começar, inclusive se fosse convencional continuaria a ser qualificada como terrorista. Parece estranho, mas o arsenal de armas do governo dos EU, a sua potência aérea e a sua artilharia fazem do terrorismo uma reacção praticamente inevitável. O povo compensa a falta de dinheiro e poder com astúcia e estratégia.
Nestes tempos de ansiedade e desesperação, se os governos não fazem o possível por respeitar a resistência não violenta, estão a favorecer por omissão os que optam pela violência. A condenação do terrorismo pelos governos não é credível se não se mostram dispostos a mudar ante a dissidência não violenta.
Mas em vez disso os movimentos de resistência estão a ser esmagados. Qualquer tipo de mobilização ou organização política de massas está a ser comprada, destruída ou simplesmente ignorada.
Entretanto, os governos e os grandes meios de comunicação, sem esquecer a indústria cinematográfica, desperdiçam o seu tempo, atenção, tecnologia, investigação e admiração na guerra contra o terrorismo. É a deificação da violência.
A mensagem que enviam é perturbadora e perigosa: se queres expressar uma queixa de carácter público, a violência é mais eficaz do que a não violência.
À medida que se alarga o abismo entre o rico e o pobre; à medida que a necessidade de apropriar‑se dos recursos mundiais e controlá-los com o fim de alimentar a grande maquinaria capitalista se faz mais urgente, o descontentamento não fará mais do que aumentar.
Para aqueles de nós que estão no lado errado do império, a humilhação está a tornar‑se insuportável.
Cada uma das crianças iraquianas assassinadas pelos Estados Unidos era nosso filho. Cada um dos prisioneiros torturados em Abu Ghraib era nosso companheiro. Cada um dos seus gritos era nosso. Quando eram humilhados, humilhavam‑nos a nós. Os soldados estadounidenses que lutam no Iraque – a maioria voluntários recrutados nas pequenas cidades e nos bairros pobres – são tão vítimas como os iraquianos do horrendo processo que lhes exige morrer por uma vitória que nunca será a sua.
Os mandarins do mundo das corporações, os directores, os banqueiros, os políticos, os juízes e os generais observam‑nos de cima abanando a cabeça com severidade. “Não há alternativa”, sentenciam. E soltam os cachorros da guerra.
E então, das ruínas do Afeganistão, dos entulhos do Iraque e da Chechénia, das ruas da Palestina e das montanhas de Cachemira, dos morros e planaltos da Colômbia e das selvas de Andhra Pradesh e Assam, surge uma assustadora resposta: “Não há alternativa a não ser o terrorismo". Terrorismo. Luta armada. Insurgência. Chamem‑lhe como queiram.
O terrorismo é desalmado, feio e desumanizante, tanto para os que o perpetram como para as suas vítimas. Mas também o é a guerra. Poderia dizer-se que o terrorismo é a guerra privatizada. Os terroristas são os comerciantes no livre mercado da guerra. Pessoas que não crêem que o estado tenha o monopólio do uso legítimo da violência.
A sociedade humana dirige‑se para um lugar terrível.
Evidentemente, há uma alternativa ao terrorismo. Chama-se justiça.
Chegou a hora de reconhecer que por muitos armamentos ou sistemas de dominação total ou segadoras de margaridas ou falsos conselhos de governo e loya jirgas que se tenham, a paz não se pode comprar a custa da justiça.
A ambição de alguns pela hegemonia e a preponderância terá como contrapartida o anseio, ainda mais intenso, dos outros pela dignidade e a justiça.
A forma em que se manifeste a batalha, que seja formosa ou cruenta, depende de nós.
* Transcrição do discurso completo pronunciado em São Francisco, Califórnia. Ó 2004 Arundhati Roy. Para reimpressão contactar arnove@igc.org. Arundhati Roy é uma activista social e é a autora do livro premiado O Deus das pequenas coisas.
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