O défice
Há sempre um défice à espera de um novo governo.
É curioso e dá imenso jeito, não sei se já repararam. A coisa passa-se assim, pelo menos, desde o final dos anos 70. Se formos aos arquivos dos jornais, facilmente poderemos verificar que houve sempre uma herança complicada à espera de um governo acabadinho de chegar.
Se o cão é o melhor amigo do homem, o défice é, sem dúvida, o melhor amigo dos novos governos. Só assim se compreende que, praticamente desde as primeiras eleições em liberdade muitas promessas aventureiras de campanha eleitoral , continuem por cumprir. O que também é conveniente.
Foi assim com Mário Soares, com Cavaco, com Guterres. Com quase todos. Se repararem, só não houve défices e outras coisas más quando um governo de uma cor sucedeu a outro da mesma cor. O que, como se sabe, aconteceu poucas vezes.
A ladainha é conhecida.
O governo que está de saída anuncia sempre que as contas estão consolidadas e a retoma está a chegar, não tarda nada. O governo que entra, coitado, é um desgraçado: apanha sempre uma factura inesperada, uma derrapagem acolá, um buraco acoli. E passa da euforia carnavalesca à contenção mais monástica.
Confesso: eu tenho sempre pena dos governos acabadinhos de se instalar. Vêm sempre com sangue na guelra, por vezes até se ouvem ainda os ecos das promessas de campanha que fizeram. Estão eles nisto, a querer fazer-nos o bem e a querer dar-nos o bem bom e…pimba! Lá vem a tragédia e o horror, como diria o Albarran.
As medidas de combate ao défice e coisas que tais também são sempre as mesmas, não sei se já repararam. A terapia de choque passa, segundo os entendidos e Vítor Constâncio, por contenção salarial e nas despesas públicas, aumento das receitas e, de quando em vez, aumento de impostos para quem não pode e desagravamento para quem pode. As televisões, fazendo eco das medidas do Governo, anunciaram que a crise vai chegar a todos. Do bairro do Aleixo à Quinta do Lago, presume-se. Alguém acredita?
Se o défice existe e exige medidas drásticas quase desde o início da democracia é fácil concluir que as medidas drásticas aplicadas nunca resolveram os problemas. Pergunta-se, então: onde está, de facto, o problema? Ou os governos andam a mentir-nos há demasiado tempo, maquilhando a realidade, ou as crises servem interesses não declarados.
Não sou ingénuo: nunca acreditei que as crises e os défices deixassem de existir. Mas eu julgava que, com tantos especialistas, governantes e gestores a preocuparem-se connosco e com o futuro de Portugal, chegaria o dia em que passaríamos a ouvi-los dizer que era chegada a hora de aumentos reais de salários, redução de impostos e investimento sério nos bens públicos: saúde, educação, futuro. Está visto que esperaremos sentados. E continuaremos a ver os mesmos «ex´s» e actuais governantes, gestores e especialistas a dizerem como se faz ou deve fazer. Ano após ano .
Para cúmulo, a nova crise e o défice galopante são anunciados dramaticamente ao país quando nos disseram, dias a fio, com mais ou menos seriedade, que a vitória do Benfica na Super-Liga seria boa para economia e o optimismo deste povo. Afinal, também não era verdade. O que, para quem não é benfiquista, é uma dupla chatice.
Miguel Carvalho in "VISÃO", 25/05/2005
http://visaoonline.clix.pt/paginas/conteudo.asp?CdConteudo=38446
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