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continuação daqui)
O decurso da ciência normal, não é feito só de êxitos, pois se assim fosse, não poderíamos assistir às inovações profundas que têm lugar ao longo do desenvolvimento científico e que, segundo Kuhn, ocorrem por mudança de paradigmas.
"Ao cientista «normal» pode suceder que o problema de que se ocupa, não só não tem solução no âmbito das regras em vigor, como tal facto não pode ser imputado à impreparação ou inépcia do investigador". Esta experiência pode ser partilhada por outros cientistas e para além disso, pode acontecer que o número de incongruências seja cada vez mais significativo e a dificuldade em solucioná-las aumente consideravelmente, ou até mesmo, o cientista confrontar-se com incongruências de impossível solução à luz do paradigma. "O efeito cumulativo deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de crise. Incapaz de lhe dar solução, o paradigma existente começa a revelar-se como a fonte última dos problemas e das incongruências, e o universo científico que lhe corresponde converte-se a pouco e pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado correctamente. Já outro paradigma se desenha no horizonte científico e o processo em que ele surge e se impõe constitui a revolução científica e a ciência que se faz ao serviço deste objectivo é a ciência revolucionária".
O novo paradigma irá redefinir os problemas e as incongruências até então insolúveis, dando-lhes uma solução convincente, e é neste sentido que ele se vai impondo junto da comunidade científica. Essa substituição não ocorre de um modo rápido; o périodo de crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser bastante longo. É compreensível que assim seja, já que cada um dos paradigmas estabelece as condições de cientificidade do conhecimento produzido no seu âmbito, e essas condições podem ser consideradas ridículas, triviais ou insuficientes, pelos defensores do velho paradigma, ou seja, os cientistas claramente comprometidos e educados à luz do paradigma anterior, que tudo fazem para impedir a substituição. Neste período, o diálogo entre os cientistas é um diálogo de surdos, já que existe uma clara incompatibilidade de paradigmas, utilizando a linguagem kuhniana, os paradigmas são incomensuráveis. Estamos pois, na presença de duas visões radicalmente diferentes do mundo, o que torna impossível uma solução de compromisso, na tentativa de tornar compatível os dois paradigmas. Este período de crise, evidencia claramente, que o espírito crítico e a audácia na procura da verdade, não são características do cientista. Ao contrário daquilo que era afirmado por Karl Popper, o cientista não passa a vida a pôr em causa aquilo que aprendeu, pelo contrário, defende esse património de um modo insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma redefinição radical do trabalho até então realizado. A imagem do cientista, é a de um sujeito profundamente conservador e que a todo o custo procura resistir à mudança (princípio kuhniano da tenacidade)."Mais ou menos tempo será necessário para o novo paradigma se impor, mas, uma vez imposto, ele passa a ser aceite sem discussão e as gerações futuras de cientistas são treinadas para aceitar que o novo paradigma resolveu definitivamente os problemas fundamentais. Da fase da ciência revolucionária passa-se de novo à fase da ciência normal e, portanto, ao trabalho científico sub-paradigmático".Inicialmente o paradigma emergente será aplicado em várias áreas, essa aplicabilidade será assumida sem ainda se ter feito qualquer tipo de prova nesse sentido. É para estas áreas que a ciência normal se vai orientar.Em jeito de conclusão, podemos referir que a grande inovação do discurso kuhniano no domínio da filosofia da ciência, passa por um lado, pela afirmação de que o desenvolvimento científico não é cumulativo e, por outro lado, e é neste ponto que reside, no nosso entender, a profunda inovação kuhniana, que a escolha entre paradigmas alternativos não se fundamenta em aspectos teóricos de cientificidade, mas em factores históricos, sociológicos e psicológicos, ou seja, numa certa subjectividade e até mesmo numa irracionalidade, que acaba por ter um papel decisivo e fulcral na imposição de determinadas teorias em detrimento de outras. Essa imposição, não se deve ao mérito científico das teorias, pelo contrário, devemos procurar as causas dessa imposição, saindo do "círculo das condições teóricas e dos mecanismos internos de validação e procurá-las num vasto alfobre de factores sociológicos e psicológicos. O processo de imposição de um novo paradigma é um processo retórico, um processo de persuasão em que participam diferentes audiências relevantes, isto é, os diferentes grupos de cientistas. É necessário estudar as relações dentro dos grupos e entre os grupos, sobretudo as relações de autoridade (científica e outra) e de dependência. É necessário também estudar a comunidade científica em que se integram esses diferentes grupos, o processo de formação profissional dos cientistas, o treinamento, a socialização no seio da profissão, a organização do trabalho científico, etc. Nisto consiste a base sociológica da teoria de Kuhn".O discurso de Kuhn é inovador, na medida em que, desvalorizando os aspectos lógico-positivistas, lógico-empiricistas, lógico-formais e racionais, que claramente encontramos no discurso popperiano, e que permitem que a ciência se explique exaustivamente pela sua lógica interna, traz para o debate, uma base sociológica até então desvalorizada e esquecida, que poderá explicar, "por que razão se comportam os cientistas muitas vezes como se estivessem mais interessados em impedir o progresso científico do que em promovê-lo; porque é que certas teorias não são aceites ao tempo da sua descoberta e só o são muito mais tarde, dando-se como que a sua redescoberta; porque razão são aceites teorias cuja obediência aos padrões estabelecidos está longe de ser evidente; porque são negadas ou rejeitadas teorias assentes em experimentação que satisfaz plenamente esses padrões".A neutralidade e a objectividade da ciência, características que desde sempre o conhecimento científico reclamou e que nos levava a distinguir esse saber das chamadas ciências humanas ou sociais, são claramente postas em causa pela teoria dos paradigmas. "
Kuhn abandonou de vez o terreno da epistemologia tradicional e a sua pacífica imagem da ciência herdada do iluminismo e reforçada pelo positivismo, lançando uma poderosa interrogação sobre a actividade científica, os seus efectivos procedimentos intelectuais e institucionais, as características das suas situações de sucesso e de crise, operando uma funda ruptura na filosofia das ciências pelo destaque que assim é dado à matriz histórica na compreensão de tais processos e fenómenos".