O último livro do Papa João Paulo II, "Memória e Identidade"
,,,publicado na quarta-feira pela editora do costume, a Rizzoli, reflecte a obsessão deste Papa em acabar com a laicidade e está já a levantar celeuma e polémica um pouco por todo o mundo, nomeadamente com o conselho central dos judeus alemães.
Assim, depois de afirmar que não aceitar os ditames dos Evangelhos é uma nova forma de totalitarismo e que este novo totalitarismo está 'insidiosamente escondida por trás da aparência de democracia', conclui que 'devemos interrogar-nos, no início de um novo século e de um novo milénio sobre certas escolhas legislativas decididas nos parlamentos dos regimes democráticos actuais.' Neste passo, o Papa precisa: 'O que vem imediatamente ao espírito são as legislações sobre o aborto',. Acrescentando que os parlamentares que aprovam estas leis devem 'estar conscientes de que estão a ultrapassar as suas competências e a entrar em conflito aberto com a lei de Deus e a lei da natureza'.
Claro que o piedoso Papa se esqueceu de mencionar que Hitler chegou ao poder com o precioso auxílio do Partido Católico, Zentrum, liderado pelo monsenhor Klaas, que foi íntimo colaborador de Eugenio Pacelli (depois papa Pio XII) nos anos 20 e de outros partidos cristãos tal como manifestou Pacelli depois das eleições para o Reichstag em 1932: 'É expectável e desejado que, como o Zentrum, e o Bavarian People's Party, assim também os outros partidos que se sustentam nos princípios cristãos e que agora incluem também o Partido Nacional Socialista, nesta altura o partido mais forte no Reichstag, usarão todos os meios de forma a impedirem a bolchevização cultural da Alemanha, que está em marcha pelo mão do Partido Comunista.'
Para além deste branqueamento imperdoável do papel dos partidos cristãos em geral e católicos em particular na ascensão ao poder de Hitler, o Papa dos cristãos menoriza de uma forma vergonhosa o genocídio nazi, insulta, com a habitual e expectável tolerância cristã, todos os que não consideram sagrado um óvulo fertilizado ou um embrião, chamando-lhes implicitamente neo-nazis. Claro que o insulto explícito a todas as mulheres que alguma vez abortaram apenas segue a norma de uma Igreja misógina que ainda hoje considera que a mulher se deve remeter a um papel menor como expiação do pecado original de uma Eva imaginária.
Ateismo.net
O Papa e a Democracia
Manuel Carvalho - no Publico
Em "Memória e Identidade", João Paulo II vai para lá do bem e do mal e, recorrendo a uma linguagem que raia a intolerância, manifesta dúvidas profundas sobre a natureza das democracias laicas e liberais
Nos últimos dias, João Paulo II regressou à actualidade. E não apenas devido ao agravamento do seu estado de saúde; também pela polémica que o seu livro "Memória e Identidade" está a gerar. Não que se vislumbrem nas declarações do Papa opiniões capazes de infirmar o seu profundo conservadorismo ou de relativizar a sua defesa de uma organização política e social nos limiares da teocracia. "Memória e Identidade" é um documento importante porque nos leva até ao extremo da concepção do mundo de Karol Wojtyla, permitindo-nos compreender por que razão é "um contraponto ao Papa João XXIII, que, durante o Concílio Vaticano II, nos anos 60, e de numerosas outras formas, tentou reconciliar os católicos com a era moderna", como ontem escreveu no PÚBLICO Ralph Dahrendorf.
No livro, Wojtyla estabelece o cartesianismo como a fonte primordial dos totalitarismos e das "ideologias do mal". Aquilo que nos ensinaram a considerar como uma libertação torna-se, aos seus olhos, um pecado original: depois de Descartes, "se o homem pode decidir por si mesmo, sem Deus, o que é bom e mau, pode também decidir que um grupo de pessoas seja aniquilado". Simples. Para o Papa, o mundo ideal existiu antes do racionalismo: na Idade Média, "com o seu universalismo cristão, com a sua fé simples, forte e profunda". A violência e a hipocrisia da Igreja desse tempo, que estiveram na origem da Reforma, não existiram, obviamente.
Do cartesianismo ao iluminismo e daqui à denúncia dos males das sociedades ocidentais vai um passo. Mencionando o laicismo "oposto ao evangelho", o Papa chega a perguntar se não estaremos perante "uma nova forma de totalitarismo subtilmente oculto atrás das aparências da democracia". Para João Paulo II, a soberania popular é irrelevante, e o Estado de Direito que garante o pluralismo de opiniões, de hábitos e de crenças e regula até o que é ou não é de "César" parecem merecer-lhe pouco mérito.
Mas é no ataque ao aborto que Karol Wojtyla melhor exprime o seu radicalismo. Não apenas porque o compara a um "extermínio legal", o que levou círculos judaicos na Alemanha a criticarem a relação que sugere com o Holocausto. Também porque, vitupera, este "extermínio" é decidido por "Parlamentos eleitos democraticamente". Ora, precisa o Papa, o nazismo também se consolidou com uma eleição, o que o leva a perguntar se nos Parlamentos, e, em concreto, no Parlamento Europeu, "não se estará operando uma nova ideologia do mal, talvez mais subtil e encoberta".
Nos tempos de incerteza e de mudanças profundas que conhecemos, é útil que o Papa promova os valores morais do cristianismo como referências fundamentais para o futuro. Mas, em "Memória e Identidade", João Paulo II vai para lá do bem e do mal e, recorrendo a uma linguagem que raia a intolerância, manifesta dúvidas profundas sobre a natureza das democracias laicas e liberais. Seguindo o seu raciocínio, é admissível que alguns fiéis as encarem como um alvo a abater. E, assim, o Papa que tanto contribuiu para a democracia no Leste, estará a abrir as portas às heranças mais negras do catolicismo. Que são muitas, como se sabe.
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