“variações infímas podem alterar irreversivelmente o padrão dos acontecimentos” Uma simples mistificação dos economistas americanos, fazendo tábua rasa da distinção entre o Valor de Uso e o Valor de Troca das mercadorias, cientificamente dada a conhecer á Humanidade por Karl Marx em “O Capital” moldou o mundo do pós-guerra tal e qual o conhecemos.

domingo, abril 23, 2006

Petróleo III - Cavaco e o xadrez politico africano

Que se espera de Cavaco Silva? Os labirintos da alta-politica são sinuosos e complexos, mas espera-se que use todo o peso da sua nova influência para encorajar as “kakocracias” lusófonas no relacionamento com Belém, sob uma perspeciva neo-colonial


sintetizando Carlos Pacheco no Público (17/Fevereiro):
CSilva, sendo amigo pessoal de alguns chefes de Estados africanos (entre eles o vitalicio José Eduardo dos Santos -Zedu), decerto irá ajudar o Executivo a incrementar essas relações e elevá-las a um nivel nunca antes visto. “Acredito neste prognóstico, todavia recuso-me a imaginar que o presidente eleito venha a dar os mesmos passos que deu enquanto primeiro-ministro. A forma expontânea como ele mesclou, por exemplo, a sua posição de alto dirigente português com os interesses e a politica do MPLA e do seu governo é uma lembrança que guardo apreensivo. Para quem não se recorda, em Setembro de 1991 Csilva participou no Luena (Moxico) de um comicio organizado pelo partido de Zedu, onde deixoi claro o seu apoio oficial a um dos signatários do acordo de paz de Bicesse, mediado por Portugal. Foi uma época em que Angola conheceu um alivio passageiro nos furores da guerra. Ainda assim, o medo cirandava por todos os becos das cidades, o cheiro a pólvora misturava-se com os velhos ódios secretados pelo MPLA e pela UNITA. No ar pairavam muitas incertezas, a paz parecia irreal. Quem lá viveu, sabe do que estou a falar. Como é evidente, o gesto de Csilva não podia ter sido mais infeliz nessa circunstância: foi anti-convencional em termos de representação de um Estado estrangeiro. Caiu muito mal na maioria da população que não se identificava com o MPLA, e tambem entre os lideres partidários. Pior: aprofundou nos angolanos as suas discórdias e contribuiu para adensar sombras de desconfiança quanto à seriedade e isenção de Portugal no no processo de paz”.

Carta aberta a Pepetela

Um genocídio silenciado - Aqui jazem as vitimas do 27 de Maio de 1977

Milhares de angolanos continuam a sentir-se agredidos na sua consciência e dignidade pelos horrores por que passaram no Governo de Agostinho Neto. Mas o que mais os choca é a atitude dos órgãos superiores do MPLA e do Estado, que persistem em recalcar e anular a memória de tais acontecimentos. Como diria o romancista alemão Gúnter Grass, nenhum país se resigna a viver em paz enquanto nas suas próprias caves houver cadáveres escondidos.
(leia mais no sitio da Associação 27 de Maio)

afinal de contas o escritor super-star tem "culpas no cartório"


Carlos Pacheco, Historiador angolano,
A declaração que V. Publicou o mês passado a justificar o seu papel na tragédia do 27 de Maio de 1977 é um documento tão cheio de omissões em relação aos factos que refere que eu não posso deixar de tomar uma posição crítica.
Ao protestar a sua inocência em relação aos horrores e à exterminação generalizada de militantes do MPLA nesse período, V. Diz ter-se limitado a desempenhar funções dentro de uma Comissão nomeada pelo Bureau Politico, cuja tarefa era “(...)seleccionar entre os depoimentos dos detidos(...) os que seriam mais elucidativos para serem transmitidos pelos orgãos de informação”. E deixa subentendido que qualquer outra responsabilidade que se lhe queira assacar, de participação na repressão ou em algum tribunal, é uma acusação desprovida de verosimilhança, fruto simplesmente de uma grande confusão com outras pessoas e entidades que funcionaram também no Ministério da Defesa em Luanda (onde se centralizaram as questões respeitantes ao 27 de Maio); visto o seu trabalho jamais se ter confundido com o que se passava e decidia noutros espaços. E termina por desejar que as instâncias superiores do MPLA venham em sua defesa e o ilibem de qualquer suspeita.
Repare bem: eu não estou aqui para o incriminar ou julgar, não é essa a minha atribuição. O que somente me move é derramar luz sobre os factos do passado de maneira a poder descrever e explicar a história cm mais rigor. Se alguem tiver que julgar alguem, essa faculdade é pertença exclusiva da sociedade e das suas instituições no pleno gozo da soberania. Se devo perdoá-lo pelo esquecimento, na esteira do que pregava o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) nos seus Fragmentos de um Evangelho Apócrifo, sinceramente respondo que tal gesto me ultrapassa. Não por incapacidade de o fazer a titulo individual, mas por deferência para com a sombra nua de milhares de desaparecidos ou por um compromisso com os seus fragmentos de sangue que reclamam por justiça. Como a justiça ainda não chegou, não faz sentido falar em perdão. Por esta ordem de razões, só me posso permitir uma atitude: confrontá-lo com algumas dúvidas que a sua declaração me suscitou na esperança de que V. Venha a esclarecer qual foi concretamente o seu desempenho institucional naqueles tempos negros de barbárie.
Mas antes de prosseguir, deixe-me fazer-lhe uma advertência. Não se iluda, ilustre concidadão, pensando que o MPLA por solidariedade ou por consideração á sua leal e desinteressada prestação de serviços á revolução o venha a cooenestar dos estigmas de que se queixa. Lembre-se das personagens de George Orwell (autor de 1984) que se humilharam ao Grande Irmão (o Partido) e lhe entregaram as suas existências, persuadidas de que ele representava a chave dos designios superiores da História e nunca as abandonaria. Ainda por analogia, veja o que sucedeu com o desmoronamento da União Soviética e com as pessoas que durante uma vida inteira se dedicaram ao Partido. Postas de parte e deixadas entregues a si próprias, não souberam o que fazer com as suas crenças, enquanto outras – por crimes que o Partido as induziu a cometer – carregam solitárias o peso de teriveis fantasmas.
Reconheço que os seus livros são admirados pela beleza e pela “transcendência espiritual” das estórias que conta. Porém, preferiria vê-lo doutra forma. Não como um escriba sentado e submisso que sempre cortejou o principe e a sua côrte; que sempre se acomodou aos servilismos culturais do MPLA e aos fetichismos do seu regime politico; ou que sempre se calou diante das monstruosidades criminais e totalitárias do Estado, e sempre fingiu ignorar os abusos contra o pensamento e a liberdade de expressão. Ao interpelá-lo agora com esta carta, conto um dia vê-lo como um escriba de pé que se libertou da passividade de outrora, que colocou um ponto final no seu silêncio e, finalmente, resgatou a “verticalidade do verbo”, de que fala o poeta uruguaio Saul Ibargoyen.
Não me interprete mal. Não estou a querer cingir na sua lapela o botão de dissidente, nem a sugerir que o deva ser, o que estou a propôr é que tenha o “hábito altamente incómodo” de falar verdade – como declarava o novelista e intelectual russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937) – ao invés de se contentar em ser aplaudido como um tartufo. É isso que muita gente espera de si depois de ler o seu documento.
Com efeito, esperam-se mais explicações, especialmente sobre a tal Comissão em que V. Trabalhou. Para as pessoas menos avisadas (ou desinformadas) fica a impressão que os membros dessa Comissão, do principio ao fim, se pautaram por um espirito de equanimidade. No entanto, não foi essa a percepção nem a experiência que colhi quando V. e outros (entre os quais ministros e altos responsáveis do MPLA) me “interrogaram” na tarde do dia 4 de Junho de 1977. O que ali se passou (recorda-se?) foi tudo menos uma investigação ditada pelo rigor e pela observância de normas juridicas, e menos ainda pelo respeito a regras de humanidade, e sim uma longa e delirante sessão de tortura psicológica, temperada por gritos de achincalhamento, por ameaças fisicas e todo o tipo de bestialidades. No tempo em que durou aquele inferno inquisitorial tive por vezes a sensação de estar na antecâmara da morte. Aliás, o que essa Comissão fez comigo, fê-lo tambem com muitas outras vitimas, totalmente desprotegidas. Pergunto-lhe pois, caro conterrâneo, o que representa para si um acto destes? É ou não um acto de repressão, de selvajaria institucional, quando V. alega não ter participado de tais práticas? É ou não algo de comparável aos famigerados processos de Moscovo e Pequim onde, afinal, prevaleceu o sádico prazer de punir e destruir moral e fisicamente pessoas cujo delito era pensarem diferente?
Outra explicação que se lhe pede tem a ver com a sua postura moral ante a avalancha de actos hediondos que decapitaram uma parcela importante da juventude angolana, a melhor talvez do MPLA. Até hoje V. não emitiu uma palavra a respeito, o que é estranho. O facto de ter trabalhado no Ministério da Defesa deu-lhe ocasião para ver de perto a onda de canibalização e histeria sanguinária em que o país soçobrou. Se não foi um sujeito ausente, pelo menos esteve bem, dentro desse clima de terrôr e força. Que adianta afirmar não ter sujado as mãos de sangue e não participar de sentenças de morte? Acaso não ocorre que, tendo estado no lugar em que esteve (e indo até ao fim), acabou por se tornar cúmplice de toda essa irracionalidade?
A sua posição moral, na verdade, é bastante controversa, sem esquecer outras situações não menos delicadas que, julgo, lhe ficará bem elucidar. Como, por exemplo, o seu papel na campanha de intoxicação ideológica, muto antes do 27 de Maio, com artigos na imprensa oficial, nos quais – por recurso ao simbolo da serpente – se aviltaram figuras politicas de elevado escalão na hierarquia do Estado e do Partido, alem de terem servido para desumanizar o processo politico e empurrar uma boa parte dos militantes do MPLA para o ostracismo. Quem lhe encomendou este papel de protector especial das instituições?
(26 Dezembro2005)

Até à presente data, aos factos, Pepetela disse nada,,,

terça-feira, abril 18, 2006

Walmart

¿Como foi que uma pequena empresa do Arkansas se transformou na maior corporação do planeta?, ao rebaixar salários, reprimir sindicatos, chantagear governos e destruir pequenas empresas? - porque a tentação do "preço baixo" pode ser a porta de entrada para a contra-utopia neoliberal

por Serge Halimi (autor de Cães de Guarda)

"Dos farrapos à fortuna": esta definição ritual do "sonho americano" de mobilidade social deve expor permanentemente o seu stock de belas histórias para fomentar a ilusão em todos. John D. Rockefeller, pequeno contabilista em Cleveland, tornou-se aos 31 anos no mais poderoso patrão do petróleo do mundo. Steve Jobs abandonou a universidade antes de se formar para fundar uma pequena empresa na sua garagem, a Apple, que tornou o jovem californiano multimilionário antes dos trinta anos de idade.

O mito é o mesmo em torno da Wal-Mart, mas desta vez mais forte. No início, à partida uma pequena loja no Arkansas, num dos estados mais pobres do país. Hoje, à chegada, um volume de negócios que ronda 310 biliões de dólares (em 2005), uma família da qual quatro filhos estão entre as dez pessoas mais ricas do planeta, uma cadeia de hipermercados que se tornou ao mesmo tempo a maior empresa do mundo - ultrapassou a ExxonMobil em 2003 - e o principal empregador privado nos EUA. As vendas da Wal-Mart representam 1 CD em cada 5 comprados nos Estados Unidos, 1 tubo de pasta de dentes em cada 4, 1 berço para bébé em cada 3. E de maneira mais significativa, 2,5% do PIB norte-americano! Mais rica e mais influente que cento e cincoenta países, a empresa deve às regras impostas aos Estados onde se instala, e aceites por estes, o poder que exerce hoje.

O modelo Wal-Mart

Com esta potência, não há por que se espantar que a maior parte das transformações (econômicas, sociais, políticas) do planeta tenham encontrado o seu reforço - às vezes também a sua origem, a sua correia de transmissão, o seu acelerador - em Bentonville, no Arkansas, sede da empresa. Combate contra os sindicatos, deslocalizações de parte da produção para o exterior, utilização de mão-de-obra super-explorada que a desregulamentação do trabalho e os acordos de livre comércio tornam cada ano mais abundante: é o modelo Wal-Mart. Pressões sobre os fornecedores para obrigá-los a reduzir o máximo possível os seus preços, comprimindo os salários (ou estabelecer-se no exterior); indefinição das funções para favorecer o encadeamento das tarefas e assim perseguir o menor tempo morto, a menor pausa: é o modelo Wal-Mart. Construção de estabelecimentos horríveis (as "caixas de sapatos") entulhados de mercadorias pelo exército de 7.100 camiões gigantes da empresa, rodando e poluindo 24 horas por dia, a fim de encher, na hora certa, os porta-malas de milhões de carros enfileirados nos enormes estacionamentos de quase todas as 5 mil "caixas de sapatos" que a multinacional dirige no mundo: é o modelo Wal-Mart.
Depois, quando os sindicatos contra-atacam, quando os ecologistas se manifestam, quando enfim os clientes avaliam o que os "preços mais baixos" escondem, quando artistas se esquecem por um momento de se vender para participar do movimento popular, quando cidadãos barram a instalação de novos cubos de cimento nos seus territórios, é ainda a Wal-Mart que, desta vez, recruta velhos "comunicadores" da Casa Branca, democratas ou republicanos, e os encarrega de limpar a imagem da empresa, saturando os meios de comunicação (2). Eles dizem: A Wal-Mart tornou-se "ética"; procura apenas criar empregos - sem dúvida, pagos de maneira medíocre, mas antes pouco do que nada, e os clientes gostam tanto dos preços baixos... E acrescentam que a busca obstinada de lucro permitiu melhorar a produtividade nacional. E que, doravante, a empresa defenderá o meio ambiente como socorreu as vítimas do furacão Katrina. Exploração, comunicação: mais um modelo...

Na realidade, como se surpreender efetivamente com isso? Não se torna a maior empresa do mundo por acaso, simplesmente porque, 40 anos antes, o fundador Sam Walton (que morreu em abril de 1992, poucos dias depois de ter recebido uma das mais altas condecorações norte-americanas das mãos do ex-presidente George Herbert Bush) teve a inspiração de vender melancias na calçada da loja e de, ao mesmo tempo, oferecer às crianças dos seus clientes passeios em cavalinhos no estacionamento (3).

A primeira loja Wal-Mart foi aberta em 1962, em Rogers, no Arkansas, numa zona rural abandonada. Nove anos depois, a empresa havia ampliado a sua esfera de influência, estabelecendo-se em cinco estados. As primeiras lojas que abriu, de fraca densidade, foram ignoradas pelos grandes distribuidores: a Wal-Mart estabeleceu solidamente o seu monopólio ali, antes de estendê-lo para outros lugares. Ela privilegiou a periferia dos centros urbanos para desfrutar ao mesmo tempo da clientela das cidades e dos preços mais baixos dos terrenos. Antecipando em 1991 o acordo de livre comércio norte-americano (Nafta, na sigla inglesa) que o presidente William Clinton, ex-governador do Arkansas, ratificou dois anos depois , a Walmart chamada pelo diminuitivo de “o Pequeno Polegar de Bentonville”, onde Hillary Clinton pertenceu ao Conselho de Administração entre 1986 e 1992 (4), internacionalizou-se e desembarcou no México. No Canadá em 1994. Em seguida no Brasil e na Argentina (1995), na China (1996), na Alemanha (1998), no Reino Unido (1999). Em 2001, as receitas da Wal-Mart ultrapassaram o PIB da maior parte dos países, entre eles a Suécia; a Carrefour, a segunda empresa do sector (72 biliões de euros em 2004), que a Wal-Mart pensou comprar em 2004, está mais presente internacionalmente. Mas a empresa fundada por Sam Walton orgulha-se de um trunfo soberano: os 100 milhões de norte-americanos que procuram toda semana os "everyday low prices" (preços baixos diariamente) que ela lhes propõe. O preço dos preços baixos

Lá mais baixos, são eles. Em média, 14% (5) . Mas à custa de quê? - é a grande questão. A resposta difere de acordo com o que preocupa fundamentalmente o cliente à espreita dos melhores negócios ou, sobretudo, os assalariados de milhares de fornecedores de uma empresa capaz de obrigar cada um a manter - e reduzir - seus custos. Para que o cliente da Wal-Mart fique satisfeito, o trabalhador deve sofrer... Para que os preços da Wal-Mart e de seus terceirizados sejam sempre os mais baixos, é preciso também que as condições sociais se degradem à sua volta. E, conseqüentemente, é preferível que os sindicatos não existam. Ou que os produtos venham da China.

A esquizofrenia do cliente que economiza com tamanha obstinação, que acaba contribuindo para empobrecer o produtor que ele também é, pode parecer teórica e distante. No nível de poder que a Wal-Mart exerce (8,5% das vendas a retalho dos Estados Unidos, se não considerarmos a indústria automobilística), a contradição torna-se rapidamente real e imediata. A empresa de Bentoville vangloria-se dos "2.329 dólares por ano" que ela "permite que as famílias que trabalham economizem"; afirma ter aumentado 401 dólares do poder de compra de cada estadunidense em 2004 e, no mesmo ano, ter permitido a criação, direta ou indireta, de 210 mil empregos (este cálculo omite que o dinheiro economizado por seus clientes afectou outros consumos e, portanto, deprimiu a actividade noutros lugares). Os adversários da multinacional têm em mente indicadores menos atraentes. Os preços baixos não caem do céu. Eles explicam-se em parte pela redução de 2,5% a 4,8% do rendimento médio dos assalariados em cada um dos territórios dos Estados Unidos onde a multinacional se instalou. A empresa reduz a remuneração nos locais em que se desenvolve. Cria as condições dos "everyday low prices". E, ao fazê-lo, multiplica o número de clientes que logo não terão outra possibilidade senão a de ter de economizar nas suas prateleiras.

Na verdade, nessa luta desigual entre o jarro de ferro da distribuição e os jarros de barro da terceirização, dos empregados da multinacional, dos supermercados rivais, o "jogo do mercado" provoca um triplo efeito de deflação salarial. Em primeiro lugar, devido à dominação de uma empresa pouco pródiga em relação aos seus "associados" (termo usado correntemente). Em seguida, devido à destruição da maior parte de seus concorrentes ou da exigência, que lhes é feita para sobreviverem, de se alinharem à sua mais baixa oferta social. Finalmente e sobretudo, devido às ordens imperativas que a Wal-Mart exerce sobre seus fornecedores - inclusive países - determinando efetivamente os preços (por exemplo, em 2002, ela comprou 14% dos 1,9 bilhões de dólares de produtos têxteis exportados para os Estados Unidos por Bangladesh6).

Salários baixos e repressão

Ao longo de suas peregrinações, a empresa de Bentonville jamais renunciou a duas características de sua origem: o paternalismo e a aversão aos sindicatos. No sul dos Estados Unidos, os estados mais pobres - particularmente o Arkansas no tempo em que Clinton era seu jovem governador - regularmente vangloriaram-se da mediocridade das remunerações locais para atrair investimentos das empresas. As coisas são simples assim, para os 1,3 milhões de "associados" da Wal-Mart nos Estados Unidos: não há sindicatos. Mona Williams, porta-voz da empresa, explicou: "Nossa filosofia é que somente associados infelizes gostariam de aderir a um sindicato. Ora, a Wal-Mart faz tudo o que está em seu poder para lhes oferecer o que quiserem e o que precisarem." Com a condição, está implícito, de que não "precisem" muito: "Na verdade, é realista pagar 15 ou 17 dólares por hora para encher prateleiras?7", pergunta Williams. O presidente da empresa, Lee Scott, não enche prateleiras. Por isso, ganhou 17,5 milhões de dólares em 2004.

Para melhor se preservar de sindicatos, o gerente de cada loja dispõe de uma "caixa de ferramentas". A partir do primeiro sinal de descontentamento organizado, ele liga para um número de telefone vermelho e um alto funcionário de Bentonville é enviado por avião particular. Vários dias de pedagogia se seguem, infligidos aos "associados" para purgá-los das más tentações (ler, nesta edição, o testemunho de Barbara Ehrenreich). No entanto, em 2000, nada disso foi feito: a seção de corte de um açougue texano da Wal-Mart aderiu a uma organização operária. A empresa suprimiu esse serviço e demitiu os "rebeldes". É ilegal, mas o processo, que jamais leva a grande coisa (a desregulamentação permitiu) é interminável. No ano passado, os "associados" de uma loja em Quebec também quiseram ser representados por um sindicato. A Wal-Mart fechou a loja e explicou: "Esta loja não seria viável. Avaliamos que o sindicato queria alterar totalmente o nosso sistema de acção habitual (8) ".

É verdade. Para ter êxito, o modelo Wal-Mart precisa pagar seus "associados" de 20% a 30% abaixo de seus concorrentes do sector - e, além disso, ser muito menos generoso que eles, quando se trata de determinar os seguros sociais (doença, reforma, etc.) com os quais os empregados podem contar. Como costuma acontecer entre os patrões liberais, o Estado ou a caridade servem de socorro. Depois que um relatório do Congresso avaliou que cada assalariado da Wal-Mart custava 2.103 dólares por ano à colectividade, sob a forma de complementos a diversas formas de assistência (saúde, crianças, habitação), um estudo interno da empresa admitiu: "A nossa cobertura social custa caro para as famílias de rendimento baixo, e a Wal-Mart tem um número considerável de associados e seus filhos nos registos da ajuda pública". Menos de 45% dos empregados podem adquirir a assistência médica que lhes propõe a empresa; 46% dos filhos dos "associados", sem proteção completa, têm cobertura do programa federal destinado aos indigentes (Medicaid). Lucros privados (10 bilhões de dólares em 2004), déficits públicos. Exagerando um pouco, Jesse Jackson, candidato democrata à Casa Branca em 1984 e em 1988, recentemente comparou as prateleiras da multinacional com as "plantations"*, lembrando as condições de trabalho dos campos de algodão do sul dos Estados Unidos.

Mas, desta vez, o sul norte-americano está prestes a ganhar a guerra. A dos salários. Em 2002, a Wal-Mart previu atacar o mercado californiano e instalar na região de Los Angeles uns quarenta de seus "Supercenters", onde se pode encontrar tudo, de produtos alimentícios a acessórios para automóveis. Qual a reação dos concorrentes ameaçados (Safeway, Albertson)? Mais uma vez, exigiram de seus empregados - representados por um sindicato - redução das remunerações e das garantias sociais. De um lado, 13 dólares por hora e uma boa cobertura médica; por outro (Wal-Mart), 8,50 dólares e uma assistência mínima. O combate era desigual. Em outubro de 2003, os 70 mil empregados das cadeias instaladas na Califórnia se negaram a conceder o que lhes era exigido e entraram em greve, que durou cinco meses. Fechamento temporário e recrutamento de substitutos: 25 anos de desregulamentação do direito do trabalho reforçam a reação patronal. O sindicato cedeu.

O populismo de mercado

Quando a Wal-Mart chega, as pequenas lojas comerciais fecham. Depois que a empresa se instalou em Iowa, em meados dos anos 1980, o estado perdeu metade de suas mercearias, 45% de suas lojas de ferragem e 70% de suas confecções masculinas. Usando o repertório habitual do "populismo de mercado", a empresa retruca que apenas defende os consumidores sem muito dinheiro, que legitimamente reivindicam "os preços mais baixos" às gordas corporações de produtores ou de ricos retalhistas com remunerações indefensáveis. A multinacional amiga do presidente Bush orgulha-se de ser "eleita" diariamente pelos dólares de seus clientes enfileirados pacientemente diante das máquinas registradoras de suas lojas9. Para Lee Scott, todo o resto seria apenas uma visão "utópica" e pastoral destinada a privilegiados enquanto os subalternos "não poderiam alcançar uma vida agradável, simplesmente porque outros paralisaram uma imagem particular do que o mundo deveria ser em vez de se preocuparem primeiro com o método mais eficiente para servir o consumidor10". E Scott recorre a ameaça velada: se uma localidade recusa a Wal-Mart, sua vizinha a acolherá. A rebelde sofrerá, então, quase todos os inconvenientes da submissa (destruição do comércio de proximidade**, redução dos salários) sem desfrutar de nenhuma de suas vantagens (empregos, renda do imposto fundiário).

A mesma liberdade encarcerada para os terceirizados. Como se fosse uma Gosplan privada***, o maior retalhista do mundo pode determinar os preços dos seus fornecedores, os salários que pagam, os seus prazos de entrega. Cabe a estes reduzir custos, empregar clandestinos, ou abastecer-se na China. Se acontecer um "acidente", a Wal-Mart poderá sempre reivindicar que não é directamente um problema seu, que obviamente está indignada ao saber o que se passou... Mas que multinacional se comporta de outra maneira? A Sanofi Aventis, por exemplo, terceiriza nos Estados Unidos o seu serviço de lavandaria, contratando uma empresa que paga mal aos seus assalariados, não lhes oferece nenhuma assistência médica e combate o seu direito sindical; a Wal-Mart vai um pouco mais longe que a maior parte das outras: "Segundo o jornal mexicano La Jornada, alguns fornecedores são obrigados a deixar o poderoso que dita as ordens examinar as suas contas para acabar com os 'custos supérfluos'(11)"

Na verdade, a Wal-Mart é apenas o sintoma de um mal que avança. Cada vez que o direito sindical é atacado, que os auxílios aos assalariados são cortados, que um acordo de livre comércio aumenta a insegurança social, que as políticas públicas se tornam a sombra projectada das alternativas das multinacionais, que o individualismo do consumidor suplanta a solidariedade dos produtores, a Wal-Mart avança...

Notas:
1 - The Wall Street Journal, 3 de dezembro de 2005.
2 - Por exemplo, Michael Deaver, que assessorou o presidente republicano Ronald Reagan, e Thomas Mc Larty, que fez o mesmo com o presidente Clinton. Sobre as técnicas que empregaram e às quais recorreram naquele momento, ler "Faiseurs d'élections made in USA", Le Monde diplomatique, agosto de 1999.
3 - História contada por George Herbert Walker Bush, quando entregou, em março de 1992, a "Presidential Medal of Freedom" a Sam Walton.
4 - Hillary Clinton pertenceu ao Conselho de Administração da Wal-Mart entre 1986 e 1992.
5 - Steven Greehouse, "Wal-Mart, Driving Workers and Supermarkets Crazy", The New York Times, 19 de outubro de 2003.
6 - Relatório parlamentar de George Miller ao Congresso, 16 de fevereiro de 2004.
7 - Wall Street Journal Europe, 7-9 de novembro de 2003.
8 - International Herald Tribune, 11 de março de 2005.
* Grandes lavouras voltadas para o comércio exterior, cultivadas por escravos durante a colonização e, posteriormente, em geral, por trabalhadores nelas residentes. (N.T.).
9 - Ler, de Thomas Frank, Le marché de droit divin: capitalisme sauvage et populisme de marché, Agone, Marseille, 2003.
10 - Citado pelo Financial Times, 6 de julho de 2004.
** Resultante da tradução literal da expressão francesa "de proximité", inicialmente utilizada para designar os "emplois de proximité", ou seja, os empregos remunerados ligados aos "serviços pessoais" (baby-sitters, acompanhantes de idosos, enfermeiras, faxineiras etc.), foi incorporada ao jargão das ciências econômicas e sociais, em que passou a ser usada numa série de conceitos relacionados com as práticas da economia solidária. (N.T.).
*** Referência ao órgão central de planeamento soviético.
11 - Walter Bouvais e David Garcia, Multinationales 2005, Editions Danger Public, Paris, 2005, p. 325

segunda-feira, abril 03, 2006

Bulimia Imobiliária +70 mil camas na Costa Alentejana

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a Direita concorda com Sócrates

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domingo, abril 02, 2006

continuação

PARA UM NOVO PARADIGMA MARXIANO


Se, portanto, é o binómio opressão/resistência que gera a essência social da Multidão, é necessário identificar os caracteres da opressão pós-moderna para delinear os caracteres da Multidão e, assim,”propor novamente o projecto político marxiano da luta de classe”.
Para Negri e Hardt a Multidão é, antes de mais, formada por todos quantos estão sujeitos ao controlo do Capital e, portanto, potencialmente adversos a ele. A estrutura da opressão é produzida, hoje, pelo Trabalho pós-moderno, no qual já não são centrais os conceitos de fábrica fordista e classe operária, mas as condições de precariedade, mobilidade, flexibilidade, fusão indistinta entre tempos de trabalho e de não trabalho. Já não investe só os aspectos materiais da produção, mas interessa também as necessidades, as ideias, as emoções, os sentimentos. Ultrapassa a mera relação entre o homem e a máquina, e atinge directamente a vida social, produzindo, através do intercâmbio relacional contínuo, produtos imateriais como o conhecimento, a informação, a comunicação. A estrutura de opressão pós-moderna é, portanto, imaterial e biopolítica. Embora quantitativamente limitado às zonas do globo mais avançadas tecnologicamente, este Trabalho é todavia “predominante em termos qualitativos”, assim como o era o da fábrica no princípio da revolução industrial.
O “roubo marxiano” perpetrado pelo Capital hoje já não é calculável em termos de tempo de trabalho e mais-valia. A produção imaterial difunde-se globalmente e origina novas relações biopolíticas produtivos a uma velocidade e intensidade tal que o Capital não está em condições de exercitar o controlo e a exploração total. Esta produção – cujo elemento material é só um acessório – é feita através das trocas, das comunicações, das interacções e das cooperações contínuas entre os indivíduos, tendo como base o Comum (linguagens, desejos, sentimentos, emoções) e reproduzindo o Comum (novas linguagens, novos desejos, novas emoções, novas necessidades. O Comum não pode, portanto, ser propriedade de um só: é propriedade de todos.
A exploração é qualquer privatização de uma qualquer parceta de valor do Comum, seja essa a vida (animal, vegetal, humana), através das patentes registadas, seja esse o saber, através do copyright. O Capital, paradoxalmente, expande diariamente na escala global o Comum, privatizando, ao mesmo tempo, os lucros derivantes. Negri e Hardt não afirmam que o Comum tenha de ser mantido intangível, mas que o seu usufruto tenha que ser controlado por todos (porque produzindo graças a todos), democraticamente.
Outro legado do trabalho imaterial é o desaparecimento da distinção clara entre empregado e desempregado, podendo os indivíduos passar rapidamente e continuamente de uma condição a outra, não, cessando, todavia, de contribuir à produção social do Comum, nesta perspectiva, a Multidão não deve ser hoje limitada à classe trabalhadora (erro do marximo clássico), mas englobar, com igual dignidade, todos os actores sociais: pobres, migrantes, desempregados, marginais, desviados sexuais, excluídos de todo o género; eles também são produtores do Comum, graças à sua riqueza cultural e às suas práticas de sobrevivência. Essa riqueza antropológica e social da Multidão permite mutações bio-políticas cada vez mais fluidas, capazes de fugir ao controlo do Poder e desestabilizar assim a rede imperial. A fluidez da Multidão é representada pela sua essência de carne viva, que rejeitada a corporização que o Império quer impor-lhe com as suas hierarquias e obediência.
O Comum, pedra angular da análise de Negri e Hardt, nada tem a ver com o conceito de Comunidade, a qual, enquanto corpo social orgânico, deve ser negada. A Multidão, com a sua energia elementar, não se identifica nem nas estruturas tradicionais nem no Estado de Natureza. É, pelo contrario, o produto social “monstruoso”da mesma modernidade e, portanto, subversivo em relação a qualquer ordem constituída.
O controlo do Comum deve ser subtraído tanto ao Privado (Capital) quanto ao Público (Comunidade), pois ambos são corpos que tendem à unidade e à constrição do corpo social em estruturas hierárquicas.

COISA COMUM E “DEMOCRACIA ABSOLUTA”

Para fazer surgir a res communis – produzida e gerida pelas interacções contínuas, democráticas e transparentes dos indivíduos – é necessário destruir o conceito de Soberania, sinonimo, na tradição do pensamento politico, de unidade de comando (seja ele do Rei, do Povo, do Partido ou da Nação).
A democracia da Multidão não assenta na unidade, mas na singularidade. Nesga a si mesma qualquer soberania e pode, portanto, decidir, libertar-se da soberania do Um, qualquer que ele seja, através de práticas de insubordinação e desobediência. Assim fazendo, põe em crise a Soberania, suja existência depende da existência de um sujeito que se lhe submeta. A fuga da soberania deve interessar todos os campos do controle: cultural, material, produtivo, social. A autogestão do Comum através da cooperação e as relações bio-políticas, não origina uma nova hierarquia e autoridade entre as individualidades (assim como fizeram todas as democracias históricas), nem cede à anarquia pois é “Democracia Absoluta”.
No plano do praxis, a subjectividade política da Multidão cria-se na luta. Mesmo articulando-se em diferentes reivindicações, todos os nós da Multidão têm demonstrado compartilhar a crítica às actuais formas de representação político-social: o protesto contra a pobreza e a oposição à guerra civil global.
Frente à encruzilhada entre práticas reformistas e revolucionárias, Negri e Hardt (paladinos da subversão radical da ordem constituídas) consideram o reformismo global uma operação não resolutiva. O reformismo pode fornecer à Multidão um terreno de luta útil para maturar a sua consciência política, mas numa perspectiva complementar - nunca alternativa –à Revolução.
A acção da Multidão deve confrontar-se também com o conceito de Violência. Para os dois autores não há razão para declarar adquirido o facto que à violência do Império seja obrigatório responder com o oposto simétrico da não-violência, a qual pode ser uma escolha política da Multidão, mas não um seu imperativo moral categórico. À Violência do Poder, a Multidão pode (tem o direito de o fazer) querer responder com a violência. A violência da Multidão, todavia, tem que ser exercida só em defesa do conquistado contra a violência perpetrada pelo Poder (nunca para alcançar o conquistável); deve ser democrática, isto é, não criar, por sua necessidade, hierarquias e subordinações. A violência democrática da Multidão não deve procurar a simetria com aquela imperial, nem manter a assimetria existente. O seu papel é impedir a capacidade imperial de colocar em funcionamento o seu aparelho repressivo, por meio de práticas multitudinárias, como podem ser as manifestações carnavalescas ou as greves bio-políticas globais.
A política revolucionária pós-moderna, em definitivo, deve ter plena consciência da essência e da potencialidade da Multidão, para poder reconhecer o momento histórico de ruptura insurreccional contra o Poder imperial, abrindo, assim, o caminho à edificação do “Mundo Novo”.

 
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